Esteban Mercatante
Se seguimos o fio do raciocínio através do qual Karl Marx propõe em "O Capital", a reconstrução conceitual do modo de produção capitalista, podemos ir vendo as diferentes dimensões antiecológicas que distinguem o metabolismo socionatural capitalista. Nestes parágrafos, vamos apresentar as coordenadas deste percurso que adquirem maior relevância para a crítica ecológica a partir de uma perspectiva materialista histórica.
Os múltiplos desastres ecológicos em diferentes escalas que observamos cotidianamente, alguns dos quais se encaminham a ultrapassar níveis elevados de periculosidade, como o aquecimento global, têm causas que estão inscritas na lógica de funcionamento do modo de produção capitalista. Este se caracteriza pela busca de submeter todas as esferas do social e do natural aos requisitos do aumento permanente do lucro.
Se seguimos o fio do raciocínio através do qual Karl Marx propõe em “O Capital”, a reconstrução conceitual do modo de produção capitalista, podemos ir vendo as diferentes dimensões antiecológicas que distinguem o metabolismo socionatural capitalista. Nestes parágrafos, vamos apresentar as coordenadas deste percurso que adquirem maior relevância para a crítica ecológica a partir de uma perspectiva materialista histórica.
A mercadoria, valor de uso, valor de troca e valor
Em primeiro lugar, o capitalismo é uma ordem social que se distingue de todas as que o precederam por estar baseado na troca generalizada de mercadorias. O inovador não é a troca mercantil, que tem uma existência antiquíssima, mas que esta não seja anecdótica, reduzida ao supérfluo ou a canalizar excedentes. Produz-se com vistas à troca e somente através da troca são satisfeitas todas as necessidades sociais. Por isso, Marx identifica a mercadoria como a “célula básica” deste modo de produção. O domínio da mercadoria projeta as categorias que lhe são próprias, como as de valor e sua expressão, o valor de troca, para todo o conjunto dos âmbitos da vida social. A relação da sociedade capitalista com a natureza está permeada por essas relações de valor que lhe são próprias. Quantitativamente, o capitalismo só atribui valor à natureza na medida em que sua apropriação requer trabalho produtor de mercadorias, embora a contribuição da natureza à produção (e à vida humana em geral) não seja materialmente reduzível a este trabalho de apropriação. Aqueles atributos da natureza que servem aos processos de produção, mas são aproveitados sem que haja trabalho “socialmente necessário” – que nas relações sociais vigentes significa trabalho objetivado em uma mercadoria – não entram nesta contabilidade. A forma valor “faz abstração qualitativa e quantitativa das características úteis e dadoras de vida da natureza, ainda que o valor seja uma forma social particular de riqueza, uma objetivação social particular tanto da natureza quanto do trabalho” 1. Esta contradição ajuda a explicar a tendência do capitalismo a despojar seu entorno natural. O capitalismo, com sua lógica reducionista do valor, ignora descaradamente o papel das condições naturais na produção. Muitas vezes se critica a Marx esta falta de reconhecimento, pelo simples fato de evidenciar como nas categorias da economia política capitalista não há outro lugar para a natureza que o de ser objeto de apropriação.
“A natureza se converte puramente em objeto para o homem, em coisa puramente útil; cessa de ser reconhecida como poder para si; mesmo o reconhecimento teórico de suas leis autônomas aparece apenas como artimanha para submetê-la às necessidades humanas, seja como objeto de consumo, seja como meio de produção” 2.
David Harvey observa que a natureza “é necessariamente considerada pelo capital […] apenas como uma grande reserva de valores de uso potenciais – de processos e objetos –, que podem ser utilizados direta ou indiretamente mediante a tecnologia para a produção e realização dos valores das mercadorias” 3. Os valores de uso naturais “são monetarizados, capitalizados, comercializados e trocados como mercadorias. Só então pode a racionalidade econômica do capital se impor no mundo” 4. A natureza “é dividida e repartida em forma de direitos de propriedade garantidos pelo Estado” 5. Esta dissociação anda de mãos dadas com um processo equivalente na relação entre sociedade e natureza, que também é de objetivação e abstração. Esta ideia de abstração da natureza tem duas dimensões, que andam juntas: a conversão do natural em “recursos” a servir como insumos para a produção e a redução a unidades homogêneas e quantificáveis. Paul Burkett observa que o capitalismo tem um antagonismo específico em relação à natureza “que se manifesta em um tipo particular de subvalorização das condições naturais, e esta subvalorização é uma forma básica da contradição entre valor de uso e valor de troca” 6.
Há uma crítica que há muito tempo se coloca a partir de setores do ecologismo crítico à análise do valor realizada por Marx, e é que supostamente ele não reconheceria a contribuição do valor econômico da natureza. Não basta destacar que não há produção sem um substrato material que provém da natureza, ou seja, que toda elaboração de mercadorias – nas quais se cristaliza o valor criado pelo trabalho – constitui um metabolismo entre o social – em si uma parte da natureza, embora diferenciada – e o resto da natureza. É necessário, sustentam estas críticas, traduzir este reconhecimento em uma contabilização do valor econômico que os processos metabólicos naturais agregam às mercadorias. Estas objeções vêm de longa data 7. Atualmente, autores como Zehra Taşdemir Yaşın, Dinesh Wadiwel, Giorgos Kallis e Erik Swyngedouw propõem que não só os seres humanos, mas também a natureza, os animais, a energia produzem valor econômico sob o capitalismo 8. Jason Moore também propõe a necessidade de reconceitualizar a teoria do valor, introduzindo mais amplamente o papel do “trabalho-energia” da natureza como condição fundamental para que possa existir o excedente que o capital se apropria 9. Por outro caminho, também se chega à demanda de introduzir a participação da natureza no valor econômico.
O problema com essas proposições é entender que aquilo que não é identificado como produtor de valor para o capital resulta degradado da perspectiva da ordem social capitalista, e não do ponto de vista de quem teoriza criticamente a respeito. Confunde-se a noção de valor mercantil com uma ideia de valor intrínseco, entendido como o valor que atribuímos às coisas em si mesmas e para nossas relações. Marx não busca estabelecer em abstrato o que é valor, ou o que tem ou deveria ter valor neste último sentido, mas preocupa-se com o funcionamento da categoria de valor no capitalismo. Todo o propósito de sua empreitada crítica é mostrar como as categorias da economia política negligenciam todo um conjunto de dimensões sem as quais não é possível a reprodução das relações capitalistas. Em primeiro lugar, a exploração do trabalho, que Marx mostra como aparece velada, oculta, nas categorias de preços e salários. O mesmo vale para a espoliação da natureza. Mas para fazer isso, não se ganha muito reconceitualizando as categorias de valor de modo diferente do que operam no capitalismo. Não se eleva a importância da natureza dessa maneira, nem isso atua como freio à sua espoliação. De fato, todas as noções de “capital natural” e de “serviços ecossistêmicos” se dedicam a “dar valor” à natureza, traduzi-la em números, mas para aprofundar ainda mais o domínio das relações mercantis sobre todas as esferas. São a culminação da conversão da natureza em “recursos” que servem como insumos para a produção e a redução a unidades homogêneas e quantificáveis. Os créditos de carbono também “dão valor” à natureza e se tornaram um negócio financeiro lucrativo para grandes corporações. Por isso, essas críticas às categorias de valor desenvolvidas por Marx erram o alvo de ataque que deveria ser colocado pelo projeto ecológico crítico. Como observam bem John Bellamy Foster e Paul Burkett:
“Os esforços ahistóricos e idealistas de imaginar a internalização e integração dos custos sociais e ambientais dentro do sistema de mercado, ou de ver a natureza como a verdadeira fonte de valor, só tiram importância das contradições sociais (incluindo as de classe e outras formas de opressão) e ecológicas do sistema capitalista” 10.
Não é no plano do “reconhecimento” da contribuição da natureza em termos dos conceitos de valor que se joga a questão de fundo, mas em como transformamos as bases sociais que levam ao domínio dessas relações de valor em todas as esferas.
Trabalho concreto-abstrato, privado-social
Uma segunda característica específica do capitalismo é o aspecto bifacetado do trabalho: é um trabalho social, cada vez mais complexo e interdependente pela especialização e divisão do trabalho, mas é realizado nas esferas privadas de uma infinidade de empresas. Neste metabolismo social, que na opinião de Marx só resultou historicamente possível com base em uma divisão do trabalho social já muito desenvolvida, o aspecto social do trabalho só se evidencia quando a obra está concluída e materializada em um produto que se busca vender. O sucesso em vender a mercadoria pelo preço esperado valida socialmente o trabalho incorporado nela; o valor da mercadoria só se torna efetivo neste ato de troca. Se é vendida por um preço abaixo do esperado, o trabalho foi validado socialmente em parte. Por esta mediação do trabalho social através da troca mercantil, Marx afirma que se conformam relações próprias de coisas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas, o que ele chama de fetichismo da mercadoria. Entre muitas consequências, esta separação de esferas produz uma maneira muito limitada de considerar os impactos que cada processo de trabalho “privado” tem. O que ocorre fora da esfera imediata da produção, embora seja resultado dela (como a poluição do ar ou das águas), é tratado pelas firmas capitalistas como uma “externalidade” não incorporada em sua equação “econômica”. Esta noção de esferas separadas se transfere ao nível da sociedade como um todo, onde a “economia” (pensada como produtos, preços, ações, créditos, números de emprego, etc.) aparece como uma esfera distinta e limitada. Apesar da clara relevância e centralidade que tem nos problemas ambientais, muitas vezes pelos enfoques fragmentários não se visualizam até o final os aspectos sistêmicos que produzem muitos problemas ambientais, tratados como algo “externo”, algo assim como um efeito secundário da atividade das empresas. Certo ambientalismo mainstream, ou as abordagens de economia ecológica baseadas no pensamento econômico neoclássico, continuam pensando que “a destruição ecológica é um ‘efeito externo’ não essencial das relações sociais dominantes do capitalismo” 11, com o qual se podem encarar soluções para a mesma sobre as bases dessas mesmas relações.
A separação entre quem produz e os meios de trabalho
Em terceiro lugar, no capitalismo o processo de trabalho, ou, o que é o mesmo, a mediação metabólica entre a totalidade material natural e a esfera social, se caracteriza pelo fato de que a força de trabalho e os meios para que esta possa se desenvolver só se reúnem quando os donos da riqueza social, a classe capitalista, os adquirem e põem a funcionar sob seu comando. A força de trabalho se encontra convertida em uma mercadoria a mais, e só chega a se reunir com os meios e objeto de trabalho se antes conseguir ser vendida com sucesso em troca de um salário. Isso expõe em um novo nível a reificação e o fetichismo aos quais já nos referimos. Os capitalistas são os proprietários dos meios de produção, e por isso podem decidir o quê, como, quanto e quando se produz. Todo o processo laboral é executado sob suas ordens e tem como finalidade básica obter um mais-valor, do qual surge o lucro. A produção, de meio para satisfazer necessidades, se converte em meio para gerar lucro. Ao final do circuito de produção, os capitalistas devem ter em suas mãos um valor maior que o desembolsado em salários, meios de produção e insumos. Este mais-valor, mostra Marx, só pode ser gerado na exploração da força de trabalho, porque o valor não é outra coisa senão a expressão do trabalho requerido para produzir as mercadorias, incluindo não só o trabalho diretamente gasto, mas o que foi requerido antes para todos os insumos utilizados. Como toda mercadoria, a força de trabalho tem um valor (expresso no salário) e um valor de uso. Este valor de uso é para os capitalistas um fundamental: produzir um valor superior ao que eles pagaram por ela. O trabalhador reproduz o valor equivalente ao que o capitalista desembolsou como salário em uma fração de sua jornada; o valor que continua produzindo além desse tempo é apropriado pelos capitalistas. O trabalho que se estende além do tempo necessário para produzir o equivalente ao que gastaram os capitalistas como salário, Marx denomina mais-trabalho, e nele se gera o mais-valor do qual surge todo o lucro no capitalismo 12. Vemos então o papel fundamental que tem a alienação da força de trabalho.
Marx apela à noção de subsunção formal para dar conta desta primeira instância de subordinação por parte do capital, que reduz a força de trabalho a uma condição objetiva a mais da produção orientada à valorização, tanto quanto o são as matérias-primas e os meios de produção também comprados pelos capitalistas. Todas as sociedades de classe que precederam o capitalismo baseavam a exploração de um setor da sociedade por outro em formas de trabalho nas quais não se observava esta separação entre produtores e meios de produção. “O que precisa de explicação, ou é resultado de um processo histórico”, observa Marx, “não é a unidade do homem vivente e atuante, [por um lado,] com as condições inorgânicas, naturais, de seu metabolismo com a natureza, [por outro,]” mas sim “a separação entre estas condições inorgânicas da existência humana e esta existência ativa, uma separação que pela primeira vez é posta plenamente na relação entre trabalho assalariado e capital” 13. Marx desenvolve esta explicação através da “acumulação originária”, um processo de expropriação em grande escala – e em todos os cantos do planeta – sem o qual o capital como relação social dominante não teria sido possível.
A subsunção da força de trabalho como mercadoria – que tem um primeiro momento formal, quando os próprios processos de produção ainda não foram inteiramente reconfigurados pelo capital – e a instrumentalização da natureza, marcharam em paralelo desde a origem do capitalismo. Um pressuposto desta força de trabalho “liberada” foi que as terras que trabalhavam passaram a ser propriedade privada (os famosos “cercamentos” que Marx analisa no capítulo XXIV de “O Capital”). Desde os inícios da acumulação originária capitalista até hoje, a mercantilização da natureza, acompanhada em geral da pura e simples apropriação direta do que historicamente era comunitário, foram vitais para a expansão do capital. A consolidação do capitalismo a nível mundial significou a repetição desses processos de acumulação “originária” – ou por desapropriação, como prefere chamá-las David Harvey para acentuar que estas não ocorreram apenas na origem histórica deste modo de produção –.
John Bellamy Foster observa que, à medida “que o trabalho se tornou mais homogêneo, também grande parte da natureza passou por um processo similar de degradação” 14. A homogeneização ou produção de uma natureza “abstrata” 15, convertida em um objeto para o uso do capital, é inseparável da generalização da relação trabalho assalariado-capital.
A separação entre força de trabalho e meios de trabalho é fundamental para se livrar dos limites impostos pelos tipos de vínculos entre a força de trabalho e as condições naturais que caracterizam as sociedades pré-capitalistas. “Os requisitos de valor de uso material da produção capitalista, em particular, não estão comprometidos pelos vínculos sociais prévios dos produtores com a natureza” 16.
Ao subsumir o metabolismo socionatural da produção aos fins da valorização, surgem tensões evidentes na relação capital-natureza. Por um lado, “o capital requer força de trabalho viva e fisicamente funcional e condições materiais conducentes à encarnação do trabalho em produtos que satisfaçam as necessidades” 17. Isso significa que, como todas as formas que as sociedades humanas encontraram para satisfazer as necessidades, a produção capitalista depende da contribuição da natureza ao valor de uso. Por outro lado, o capital requer a natureza apenas na forma de condições materiais “separadas” para a sua apropriação do valor de uso da força de trabalho, “não na forma de uma unidade social e material orgânica entre os produtores e suas condições naturais de existência” 18. As condições naturais necessárias para a produção aparecem como um fator objetivo separado da força de trabalho, porque assim o determina a relação de classe fundamental do capitalismo.
Em resumo, a classificação do capital em relação aos valores de uso requeridos, com a força de trabalho explorável em primeiro lugar, representa (1) uma abstração especificamente capitalista da necessária unidade da natureza humana e extrahumana; e (2) uma degradação social da natureza e dos produtores humanos, do valor de uso em si, ao status de meras condições para fazer dinheiro 19.
Outra consequência antiecológica que se deriva da separação entre a força de trabalho e os meios de produção é que a primeira perde o poder de decisão sobre tudo o que está relacionado aos materiais utilizados e ao manejo dos resíduos que toda produção gera. Os donos dos meios de produção tomam essas decisões, sempre com o critério fundamental de minimizar os custos. Por isso, durante muito tempo poluíram rios e lagos conscientemente e sem nenhum cuidado porque não havia nenhuma sanção para isso. Na medida em que se foram impondo regulações ambientais, não abandonam essas práticas, mas realizam uma equação de custo-benefício. Regula-se a poluição. O mesmo vemos na emissão de gases de efeito estufa. Se a força de trabalho tivesse alguma ingerência na produção, seriam debatidas todas essas questões que hoje o capital impõe e que degradam as condições de vida nas cidades que habitamos.
A produção, de meio a fim em si mesma
Em quarto lugar, quando a produção deixa de estar ordenada primeiramente pelo objetivo de satisfação das necessidades sociais e passa a ser determinada pelo requisito do lucro, já não se trata simplesmente de ganhar, mas de ampliar o máximo possível a magnitude do lucro que se pode obter. Este é um aspecto distintivo da ordem social capitalista em relação às que a precederam:
quando em uma formação econômico-social não predomina o valor de troca, mas o valor de uso do produto, o sobretrabalho está limitado por um círculo de necessidades mais estreito ou mais amplo, mas não surge do caráter mesmo da produção uma necessidade ilimitada de sobretrabalho 20.
Ao romper a unidade entre força de trabalho e condições de trabalho, o capitalismo corta com as limitações que essa conexão impunha à necessidade –e à possibilidade– de ampliar continuamente o volume da produção. Os tipos de valores de uso produzidos, ou seja, os tipos de necessidades materiais e sociais que devem ser satisfeitas, já não estão limitados pelos antigos vínculos sociais dos trabalhadores com condições naturais particulares. A produção não está ligada a um nível de necessidades estabelecido de antemão por vínculos sociais entre o trabalhador e as condições naturais de produção; daí que o nível e a variedade existentes de necessidades não predeterminam o curso da produção em si. Antes, se é possível produzir e vender de maneira rentável um valor de uso particular, então ele será produzido na ausência de controles sociais forçados sobre essa produção. Com a separação capitalista da força de trabalho das condições de produção necessárias, o valor de troca –especificamente, a rentabilidade de se apropriar do valor de uso da força de trabalh6o e objetivá-lo em valores de uso vendáveis– determina quais necessidades (e de quem) são satisfeitas. “O valor de troca e a acumulação monetária competitiva, não as necessidades dadas dos produtores (ou de qualquer outra pessoa), regulam agora o crescimento e o desenvolvimento da produção humana” 21
.
O aumento da escala de produção, uma necessidade vital do capital
A separação social dos produtores humanos das condições naturais e a consequente dominação do valor de troca sobre o valor de uso, explicam assim por que, em comparação com formas anteriores de produção, o capitalismo impõe a compulsão de realizar sobretrabalho.
Isso significa várias coisas. Obter a rentabilidade máxima impõe, antes de tudo, fazer render ao máximo o investimento realizado, minimizando os desperdícios.
O operário trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence o trabalho daquele. O capitalista zela para que o trabalho seja efetuado de maneira devida e os meios de produção sejam empregados de acordo com o fim atribuído, portanto, para que não se desperdice matéria-prima e se economize o instrumento de trabalho, ou seja, que apenas se desgaste na medida em que o requer seu uso no trabalho 22.
Mas assegurar que o lucro previsto se concretize sem desperdício é uma questão elementar que se dá como dada. Saciar a sede de lucro dos capitalistas exige muito mais que cumprir essas precauções básicas. Para isso, o imperativo é ampliar a qualquer custo o mais-valor que embolsam os donos dos meios de produção. O primeiro impulso para conseguir isso foi estender as horas sob as quais a força de trabalho devia produzir em benefício dos capitalistas. Com igual gasto em salários, uma jornada de trabalho mais longa significa mais sobretrabalho embolsado pelos capitalistas. Como observa Kohei Saito, “Marx descreve primeiro a desarmonia existente na interação metabólica entre os humanos e a natureza, prestando especial atenção ao lado humano” 23. Como observa Marx, “os limites físicos e sociais” para a extensão da jornada –os primeiros vinculados à necessidade inevitável de descanso sem a qual o capital não pode continuar explorando a força de trabalho, os segundos definidos pelo tempo necessário “para a satisfação de necessidades espirituais e sociais, cuja amplitude e número dependem do nível alcançado em geral pela civilização”– estes são de “natureza muito elástica e permitem liberdade de movimentos” 24. Por isso, se dependesse dos capitalistas, a jornada de trabalho seria estendida e intensificada pelo capital até o máximo tolerável em prol de sua valorização, à custa dos sofrimentos da força de trabalho. Isso foi o que impuseram até que a resistência operária freou a voracidade do capital, conquistando leis que limitaram a duração da jornada de trabalho.
A busca por explorar ao máximo cada força de trabalho, anda de mãos dadas com o reinvestimento do mais-valor obtido para incrementar a escala de produção. Aumenta-se o volume do capital desembolsado para contratar mais força de trabalho, produzir mais mercadorias e obter mais mais-valor.
Para extrair mais sobretrabalho, os capitalistas devem aumentar a disponibilidade de matérias-primas e meios de trabalho sem os quais a força de trabalho não pode confeccionar mais valores de uso. Sem essa disponibilidade de materiais, não haveria forma de objetivar o sobretrabalho adicional. A necessidade de realizar um mais-valor crescente exige também dos capitalistas buscar os meios para poder vender um volume crescente de mercadorias, já que se estas não se vendem não se realiza o mais-valor extraído. Daí a tendência desta sociedade a ampliar gradativamente a esfera dos consumos “necessários”, incorporando nela uma variedade cada vez mais ampla de mercadorias que os capitalistas precisam vender. Mas, ao mesmo tempo, é necessário combater a durabilidade das mercadorias. Se as coisas fossem fabricadas para durar a vida toda, não haveria forma dos empresários venderem carros, máquinas de lavar, televisores ou telefones suficientes. Por isso, a obsolescência programada está no DNA do modo de produção capitalista. Por tudo isso, o incremento de sobretrabalho implica necessariamente uma pegada material crescente.
A transformação capitalista das formas de produção
Embora à primeira vista possa parecer contraditório com o fato de que o lucro surge da exploração da força de trabalho e da apropriação do mais-valor, a competição empurra os capitalistas a reduzir o tempo de trabalho necessário para a produção de suas mercadorias, ou seja, a reduzir o valor que obtêm por cada mercadoria. Os empresários que se destacam na competição são aqueles que conseguem produzir de forma mais barata, com técnicas mais eficientes e economizando em tempos ociosos e todo tipo de desperdícios. Isso reduz o valor individual de cada mercadoria, mas os capitalistas que obtêm vantagem podem obter um lucro extraordinário enquanto o resto dos empresários continua com maiores custos, porque seu preço individual estará abaixo do que rege socialmente. Quando os demais os imitam, o lucro extraordinário desaparece, mas se as mercadorias em questão entram na cesta de consumo da classe trabalhadora, o conjunto dos capitalistas é beneficiado, pois ocorre uma redução do valor da força de trabalho. Isso significa que podem pagar menos em salários sem que o consumo da classe trabalhadora seja afetado. Como consequência, aumenta o tempo da jornada de trabalho durante o qual a força de trabalho gera mais-valor que é apropriado pelo capital; isso ocorre, neste caso, sem que a duração da jornada de trabalho mude, mas sim por uma mudança nas proporções entre o tempo de trabalho necessário (que reproduz o equivalente ao valor da força de trabalho) e o tempo excedente. Por isso Marx se refere a um incremento do mais-valor relativo.
O resultado da competição para baratear as mercadorias é a tendência de aumentar rapidamente a produtividade, o que significa que, durante o mesmo tempo de trabalho, produzem-se mais valores de uso. Isso é o mesmo que dizer que se transformam volumes cada vez maiores de materiais.
Toda a produção capitalista é dirigida a extrair o máximo mais-valor absoluto e relativo possível, “e esse gasto unilateral de força de trabalho humano não faz mais do que distorcer a relação da humanidade com a natureza” 25. Dado que tanto a força de trabalho quanto a natureza:
são importantes para o capital apenas enquanto “portadores” de valor, ele atua de forma negligente em relação aos diversos aspectos desses dois fatores fundamentais da produção, conduzindo-os geralmente ao esgotamento. De fato, Marx descreve com detalhes, em O capital, como essa negligência das dimensões materiais do processo de trabalho leva ao deterioramento e destruição da vida humana e do ambiente 26.
Essa busca por ganhar competitividade barateando as mercadorias, na qual cada capitalista participa tentando se impor sobre seus concorrentes, transforma completamente as formas de produção. A separação entre os produtores e seus meios de trabalho é apenas o primeiro passo de um domínio muito mais profundo por parte do capital de todas as esferas do processo laboral. A introdução de maquinarias cada vez mais complexas e integradas cria processos de produção contínuos nos quais a força de trabalho e suas habilidades vão ficando em segundo plano. Se o capitalismo começa historicamente dependendo dos saberes dos ofícios, seu desenvolvimento converte cada vez mais a força de trabalho em apêndice e assistente de meios de produção que atuam de forma cada vez mais autônoma. Esse domínio capitalista das formas de produção, Marx o conceitualiza como uma subsunção real. O adjetivo real é utilizado para distinguir esse avanço da primeira instância em que a força de trabalho se encontra convertida em uma mercadoria, mas o capital ainda não transformou profundamente as formas de produção, por isso a subsunção é definida como formal.
A grande indústria não implica simplesmente maiores volumes de produção. Em primeiro lugar, transformar o modo de produção em uma esfera da indústria implica transformá-lo nas demais.
Isso é válido sobretudo para esses ramos industriais que estão isolados pela divisão social do trabalho, de modo que cada um deles produz uma mercadoria independente, mas entrelaçados, no entanto, como fases de um processo global. […] Mas a revolução no modo de produção da indústria e da agricultura tornou necessária também, acima de tudo, uma revolução nas condições gerais do processo social de produção, ou seja, dos meios de comunicação e de transporte. […] Daí que, excetuando a navegação à vela, radicalmente revolucionada, um sistema de vapores fluviais, ferrovias, vapores transoceânicos e telégrafos foi adaptando paulatinamente o regime das comunicações e dos transportes ao modo de produção da grande indústria. Mas, por sua vez, as descomunais massas de ferro que agora tinham que ser forjadas, soldadas, cortadas, perfuradas e modeladas, exigiam máquinas ciclópicas que a indústria manufatureira de construção de máquinas não estava em condições de criar.
A grande indústria, pois, viu-se forçada a apoderar-se de seu meio de produção característico, ou seja, da própria máquina, e a produzir máquinas por meio de máquinas. Começou assim por criar sua base técnica adequada e a se mover por seus próprios meios. Com o desenvolvimento da indústria maquinizada nos primeiros decênios do século XIX, a maquinaria apoderou-se gradualmente da fabricação de máquinas-ferramentas. No entanto, somente durante os últimos decênios a construção de enormes ferrovias e a navegação transoceânica a vapor provocaram o aparecimento de máquinas ciclópicas empregadas para fabricar primeiros motores 27.
É notável que Marx escreveu O capital quando a grande indústria mal havia atravessado a primeira de uma série de ondas de grandes transformações que ocorreram nos últimos 150 anos. Consideremos que ele não viu a eletrificação nem muito menos a eletrônica, a informática e tudo o que veio depois até as disrupções que se esperam hoje com a “internet das coisas” e a aplicação à produção de todas as tecnologias de fronteira. As mudanças nas tecnologias foram acompanhadas por toda uma técnica de organização da produção que não havia dado sequer seus primeiros passos nos tempos de Marx. Isso vai desde a chamada “administração científica” de Frederick Taylor e Henri Fayol que reorganizou os processos produtivos desde o final do século XIX, para aproveitar as potencialidades da técnica de maneira mais eficiente e explorar melhor a força de trabalho. Tampouco existia, quando saiu O capital, a linha de montagem popularizada sobretudo a partir dos sucessos de Henry Ford no início do século XX. Podemos então ter uma ideia da prefiguração que se encerra quando Marx fala da integração das maquinarias como uma espécie de “autômato” que subordina a força de trabalho. Cada uma dessas “revoluções industriais” aprofundou qualitativamente a tendência básica da grande indústria, que é que o “trabalho morto”, cristalizado em maquinarias cada vez mais complexas, domina sobre o trabalho vivo da força de trabalho. A conexão entre meios de produção organiza de maneira cada vez mais autônoma os processos produtivos e reforça o papel de apêndice da força de trabalho. Em proporção, é necessária uma força de trabalho proporcionalmente menor para colocar em movimento massas de meios de produção e matérias-primas cada vez maiores, que se materializam em volumes crescentes de mercadorias. Por isso, à medida que se aumenta a força produtiva do trabalho, ocorre ao mesmo tempo que se aprofunda a subsunção real e aumenta a demanda da locomotiva produtiva por materiais naturais que possam nutri-la.
A ciência ao serviço do aumento sistemático da produção
A produção em massa é a que, pela primeira vez,
submete as forças da natureza em grande escala (vento, água, vapor, eletricidade) ao processo de produção direto, as converte em agentes do trabalho social […] sua apropriação ocorre apenas por meio de maquinaria […] Portanto, só são apropriadas como agentes do processo de trabalho através da maquinaria e pelos proprietários da maquinaria 28.
A grande indústria tem como pré-requisito o desenvolvimento do conhecimento científico como fator independente no processo de produção. “Da mesma maneira que o processo de produção se converte em uma aplicação do conhecimento científico, assim, ao contrário, a ciência se converte em um fator, uma função, por assim dizer, do processo de produção” 29. Cada invenção se torna a base de novas invenções ou de novos métodos de produção aprimorados. É o modo de produção capitalista que primeiro coloca as ciências naturais a serviço do processo de produção direto, “enquanto, ao contrário, o desenvolvimento da produção proporciona os meios para a submissão teórica da natureza” 30. A tarefa da ciência “se converte em ser um meio para a produção de riqueza; um meio de enriquecimento” 31. Os capitalistas “e seus funcionários científicos e tecnológicos são livres para isolar e aplicar as formas particulares de riqueza natural que são mais úteis para a mecanização do trabalho e a objetivação desse trabalho em mercadorias” 32. O comportamento instrumental em relação à natureza “se torna dominante, pois as ciências se desenvolvem a partir de uma perspectiva de utilidade para o capital” 33. Isso está intimamente relacionado a um domínio nos campos científicos de lógicas reducionistas para abordar os fenômenos, que é muito bem criticado por autores como Richard Levins, Richard Lewontin, ou Hilary Rose e Steven Rose.
A aplicação da tecnologia na grande indústria e na agricultura moderna:
não tem como objetivo estabelecer uma relação sustentável com a natureza, mas sim sua utilização lucrativa. Assim como a força de trabalho se esgota e se destrói devido à intensificação e extensão da produção em busca de obter um maior mais-valor, também as forças da natureza correm a mesma sorte 34.
O processamento instrumental da natureza, “impulsionado pelo objetivo quantitativamente ilimitado e qualitativamente homogêneo da acumulação monetária”, ocorre “sem nenhuma preocupação fundamental pelas diversidades, interconexões e capacidades de ajuste limitadas que governam a reprodução da natureza humana e extrahumana” 35. Na pretensão de submeter todo o conjunto da natureza à lógica contínua e crescente da acumulação, o desenvolvimento da ciência se converte em uma arma a mais para perturbar os metabolismos naturais sem qualquer consideração pelos efeitos que essas intervenções possam produzir a médio ou longo prazo sobre os ecossistemas afetados.
Não está dito que a ciência deve servir apenas para impor a homogeneização e a degradação da natureza. O conhecimento dos diversos metabolismos naturais é uma base necessária para estabelecer uma relação equilibrada com a mesma. Mas isso só pode ser alcançado se colocarmos um fim nas condições que transformam a ciência em uma ferramenta para a exploração da força de trabalho e para a espoliação da natureza.
O salto de escalas espaciais e a autonomia do capital em relação a ecossistemas específicos
A transformação da grande indústria implica uma mudança nas escalas geográficas nas quais se desenvolve o metabolismo social, pois se algo caracteriza a grande indústria “é sua celeridade febril na produção, sua escala gigantesca, seu constante lançamento de massas de capital e operários de uma esfera produtiva para outra e suas novas conexões com o mercado mundial” 36. O aumento da produção é impensável sem uma ampliação da esfera geográfica dos mercados, o que só é possível com o desenvolvimento e a redução dos custos dos meios de transporte e comunicação. A diversificação e a extensão também ocorrem no plano da extração de recursos. Obviamente, isso já está na pré-história do capitalismo. A chamada acumulação primitiva que deu origem a este modo de produção, como relata o capítulo XXIV de O capital já mencionado, teve entre seus pontos de apoio o saque de ouro e prata realizado nas colônias. Mas a expansão capitalista aprofunda essas exigências.
A transformação capitalista das formas de produção anda de mãos dadas com uma produção capitalista do espaço, sobre a qual elaboraram amplamente pensadores marxistas como Henri Lefebvre, David Harvey e Neil Smith, entre outros. O capital é investido em infraestruturas, que permitem ao mesmo tempo acelerar a circulação do capital (trens, rodovias, portos, aeroportos, etc., que permitem que as mercadorias sejam transportadas mais rapidamente, cabeamento de telégrafo e telefone, fibra óptica para transmitir mais informações a uma velocidade reduzida) e gerar esferas de valorização para os excedentes. Com essas reconfigurações, o capital pode aumentar sua densidade manejando com facilidade espaços geográficos cada vez mais amplos.
Esse salto de escala geográfica dos processos metabólicos sociais tem várias consequências. Entre elas, significa que o capitalismo resulta muito menos dependente do que os modos de produção anteriores da preservação de ecossistemas particulares e outras condições naturais localizadas. A acumulação de capital está menos limitada por áreas terrestres, elementos e formas de vida extrahumanas particulares. Isso ajuda a explicar o fato de que o saque e a degradação das condições naturais pelo capitalismo, sem precedentes históricos, até agora não ameaçaram seriamente a reprodução e expansão desse sistema econômico. “O capitalismo, mais do que as sociedades anteriores de exploração de classes, tem a capacidade de destruir ou degradar os fenômenos naturais enquanto se reproduz e expande tanto social quanto materialmente” 37. “O capital luta para obter um acesso seguro e barato aos recursos naturais, sem se importar com problemas como a poluição do ar e da água, a desertificação e o esgotamento dos recursos naturais” 38, dos quais se desliga, deixando para trás os passivos ambientais como um problema alheio, buscando sempre o próximo território ainda sem explorar ou subexplorado que lhe permita reiniciar o ciclo. A exploração brutal das forças gratuitas da natureza é acompanhada de uma feroz corrida global para assegurar o primeiro lugar na obtenção dos recursos naturais críticos. Imperialismo e apropriação de bens comuns naturais estiveram intimamente entrelaçados desde o início. O que observamos é que a expansão dos extrativismos aprofunda a amputação ecológica que estes impõem sobre as “periferias” que nutrem os processos de produção capitalista, configurados em complexas cadeias de valor globais. Mesmo a transição energética, apresentada como uma chave para o “desenvolvimento sustentável”, aprofunda a exigência de saque de recursos, como o lítio que as multinacionais estão começando a explorar na Argentina, Chile e Bolívia.
A ordem social capitalista, então, relaxa as limitações impostas pelas condições naturais à produção graças à apropriação em grande escala das capacidades da força de trabalho e da natureza em toda a geografia planetária, e da expansão da variedade e do alcance espacial da produção material.
Crises ecológicas e perturbação da acumulação
O capital se posiciona frente à natureza como se fosse uma fonte inesgotável, que fornece recursos utilizáveis sem custo e outros dos quais só contabiliza os desembolsos de capital necessários para apropriar-se deles. Quando uma fonte se esgota – seja uma terra que perde nutrientes, uma mina que não tem metais suficientes para ser rentável, um poço de petróleo que não pode ser recuperado, ou uma fauna marinha dizimada pela pesca indiscriminada que torna a atividade economicamente inviável, para citar alguns exemplos – o capital vai em busca da próxima. Quando uma fonte energética começa a encontrar limites, aposta-se na seguinte para continuar um ciclo que deve perpetuar-se. A poluição do meio ambiente como resultado da produção é outra das facetas que essa relação alienada entre sociedade e natureza que caracteriza o capitalismo adquire.
No entanto, a crise ecológica, que tem múltiplas dimensões, pode ameaçar de diferentes maneiras o circuito de valorização do capital. Essa crise ecológica planetária dá lugar a fenômenos muito imprevisíveis, combinando choques repentinos (catástrofes) com fenômenos contínuos (como as mudanças nas precipitações). A crise climática, que se coloca como causa principal de desastres ambientais como temperaturas extremas e secas, vem impactando severamente atividades como a agricultura. A imprevisibilidade das colheitas afeta os preços, aumentando custos e reduzindo margens de lucro e, se a queda nas colheitas for muito forte, pode paralisar indústrias inteiras.
Uma das expressões claras em que o capitalismo devora suas próprias condições de sustentação é a maneira como leva ao esgotamento de recursos fundamentais. Esse esgotamento pode ser absoluto, como ocorreu com fertilizantes naturais como o guano, utilizado no final do século XIX até que suas reservas se esgotaram completamente. Também pode ser relativo, como está ocorrendo com os hidrocarbonetos e outros minerais, cujas reservas são cada vez menos puras ou de acesso mais complexo. Isso se manifesta, por exemplo, na menor Taxa de Retorno Energético da extração de hidrocarbonetos, o que significa que cada vez mais gastos de energia são necessários em relação à energia extraída.
Tudo isso significa que a questão da natureza às vezes se introduz de maneira dramática na equação de custos do capital. Essas perturbações mostram que, embora elásticos, existem limites naturais para o capital.
A quantidade de força produtiva do trabalho pode aumentar com o objetivo de obter o mesmo produto, ou mesmo um produto decrescente, de modo que esse aumento da força produtiva do trabalho só serve para compensar a diminuição nas condições naturais de produtividade – e mesmo essa compensação pode ser insuficiente –, como se tem visto em certos casos na agricultura, na indústria extrativa, etc 39.
Se deve ser investido mais e dedicado mais trabalho para extrair a mesma quantidade de valores de uso em atividades como a mineração ou a agricultura, isso significa que o valor desses produtos aumentará. O resultado é que a elaboração de todos os produtos que usam esses valores de uso como insumos enfrentará maiores custos. Se os maiores custos da agricultura ou de outros bens naturais resultam em um maior custo de vida, isso significa que a fonte de todo o lucro do capital, a exploração da força de trabalho, também se deteriora diretamente, pois isso resulta em um aumento do que terá que pagar em salários. Esses maiores custos em insumos e salários impactam negativamente a rentabilidade e podem se tornar catalisadores de crises econômicas – que geralmente não são causadas por um único fator.
Confrontada com o aumento dos custos devido ao esgotamento dos recursos, “a produção capitalista tenta desesperadamente descobrir novas fontes e métodos tecnológicos em escala global para contrariar a queda da taxa de lucro.” 40 O capital “não hesita em explorar a natureza de forma cada vez mais extensiva e intensiva, sem calcular o impacto no ecossistema.” 41
Poderíamos relatar muitas outras dimensões em que a acumulação de capital é ameaçada pelos distúrbios ecológicos. Alguns exemplos são a crise dos sistemas de seguros (especialmente agrícolas e de habitação) diante da multiplicação dos riscos ecológicos 42; a queda da produtividade laboral devido ao aumento da frequência e intensidade das ondas de calor, e suas consequências econômicas 43. Além disso, o aumento dos deslocamentos populacionais causados por catástrofes ambientais – refugiados “climáticos” – está se tornando um fator que os Estados imperialistas identificam como ameaçador.
Desastres ambientais em escala ampliada
A fuga para a frente do capitalismo frente aos distúrbios ambientais gerados tem uma dinâmica espacial específica, que é a mudança de escala. Assim como a circulação de capital em todas as suas facetas se tornou mais densa internacionalmente, criando redes cada vez mais densas e integradas, saltos semelhantes ocorreram nas transferências espaciais dos piores efeitos dos distúrbios ambientais. Os problemas associados à poluição “não apenas se deslocam de um lugar para outro, mas também são resolvidos dispersando-os e transferindo-os para uma escala diferente.” 44 A autonomia que o capital ganha em relação a ambientes naturais específicos, cuja perturbação não é necessariamente uma ameaça para uma ordem social que amplia permanentemente a escala geográfica da acumulação e responde a qualquer ameaça que as perturbações ecológicas possam gerar realocando os processos de produção, se choca com barreiras cada vez mais ameaçadoras nessas escalas ampliadas. Com as mudanças de escala, os problemas ambientais são cada vez menos locais (como a poluição de um rio ou a névoa tóxica em uma geografia limitada) e mais regionais ou diretamente globais, como ocorre com a mudança climática, a destruição de habitats, a extinção de espécies e perda de biodiversidade, a degradação dos ecossistemas oceânicos, florestais e terrestres, etc. O ritmo dos impactos também acelera de maneira exponencial. A distribuição desigual dos efeitos dessas perturbações – onde os maiores custos recaem sobre os países dependentes, especialmente os mais pobres – segue as mesmas linhas de demarcação das relações de classe – e das relações interestatais assimétricas – que organizam a economia mundial capitalista como uma totalidade hierarquizada imperialista.
A contínua reprodução em uma escala constantemente crescente da acumulação capitalista, com suas derivações antiecológicas, não faz mais do que recolocar a questão dos “limites naturais da produção no nível biosférico global.” 45 Por isso, o capitalismo é a primeira sociedade capaz de gerar uma catástrofe ambiental verdadeiramente planetária.
A crítica da economia política de Marx revela as profundezas da orientação antiecológica que caracteriza o imperativo da acumulação de capital. Os capitalismos verdes e todas as propostas de “sustentabilidade” que são cada vez mais consideradas como senso comum em ambientes empresariais – embora as extremas direitas questionem esse consenso a partir de posturas negacionistas da crise ecológica – têm como premissa que a crise ecológica pode ser enfrentada sob o domínio da mesma classe que a provocou, e mantendo o imperativo de submeter toda a natureza – incluindo a vida humana – ao imperativo da valorização. O contínuo fracasso das cúpulas climáticas evidencia a falácia dessas pretensões.
Do analisado não se deriva, é claro, nenhuma tendência ao colapso ou colapso desse modo de produção sob o peso das contradições ecológicas. O capital pode continuar a reproduzir-se mesmo em meio aos desastres ambientais, tornando as condições para a vida humana e não humana cada vez mais insuportáveis, mesmo que sua rentabilidade seja negativamente afetada e as contradições sistêmicas se agravem. Devemos tomar em nossas próprias mãos o fim desse sistema explorador do trabalho e explorador da natureza.
Somente restabelecendo a unidade entre aqueles que produzem e os meios de produção, expropriando os expropriadores capitalistas, será possível começar a estabelecer uma relação sustentável entre os humanos e a natureza.
Notas de Rodapé