Revista Casa Marx

Imperialismo na África

C.L.R. James

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A grande guerra pela democracia (ou, do ponto de vista de Hitler, a grande guerra pelo fascismo) está sendo travada na África tão intensamente como em qualquer outro lugar. Não é apenas uma questão de estratégia. Os imperialismos em competição querem a África, em primeiro lugar e acima de tudo pelo bem da África, um fato que os propagandistas democráticos alegam com a sublimidade olímpica da completa ignorância ou completa hipocrisia. Hitler, em qualquer circunstância, diz claramente que quer sua sala de estar. Mas deixe isso estar. O que queremos fazer aqui é estabelecer alguns fatos sobre a África, seu papel na economia imperialista e seu futuro em um mundo socialista. O mercado mundial que o capitalismo criou é tão fortemente intricado que nos encontraremos lidando com problemas fundamentais da sociedade moderna e a solução da crise permanente não apenas na África, mas em escala mundial.

Até 1914 a burguesia britânica não tinha a menor ideia da violência revolucionária que o capitalismo estava alimentando em seu seio, particularmente nas colônias. Um desconhecido revolucionário russo exilado chamado Lênin escreveu confiantemente sobre a emergência inevitável do proletariado na Índia e na China como os líderes das revoluções nacionalistas por vir. Mas que político britânico ou propagandista mundial se preocupou com isso? É quase precioso reler o que esses homens sábios de trinta anos atrás costumavam dizer sobre o mundo e o que nós costumávamos dizer. Mas primeiro a revolução russa, e em seguida a onda de revoluções nacionalistas que varreram os impérios britânico e francês depois da guerra, deram um susto na burguesia britânica que explica profundamente seu desejo insaciável de apaziguamento. Toda a enganação, todas as mentiras, a violência e a crueldade hipócrita que distinguiram tanto a classe dominante britânica por séculos se provaram impotentes para sufocar a grande revolução indiana, e ainda que Churchill diga pouco sobre a Índia publicamente, ele pensa sobre ela apenas menos do que sobre a Alemanha.

Índia e África

A revolução indiana1 pegou o imperialismo britânico de surpresa, mas, conforme a completa desintegração da sociedade capitalista e suas consequências para o colonialismo começaram a pressionar a burguesia britânica, uma corrente de pensamento muito particular se formou: nós fomos pegos de surpresa na Índia; se não agirmos na África, seremos surpreendidos lá também. O clímax foi a formação de uma sociedade de pesquisas sobre a África sob o comando do Instituto Real de Assuntos Internacionais, o disfarce que o governo britânico assume quanto ele quer investigar questões políticas e econômicas sem responsabilidade oficial. Uma poderosa comissão foi nomeada, conformada pelos homens mais hábeis que puderam ser encontrados na Inglaterra para a tarefa. Um conselheiro econômico do Banco da Inglaterra, um professor de história colonial em Oxford, um editor da revista Nature, Julian Huxley, Arthur Salter, Lord Lugard, seguindo Cecil Rhodes, o maior procônsul africano, e alguns outros, todos sob a direção daquele liberal bem conhecido, admirador do fascismo e defensor do modo de vida britânico e americano. Nos referimos ao falecido Lord Lothian. O comitê decidiu realizar uma pesquisa completa da África colonial e nomeou Lord Hailey, o governador das Províncias Unidas da Índia, para levá-la adiante. Pesquisas especiais foram realizadas antes do trabalho efetivo na África, sendo o mais importante um estudo do investimento capitalista na África, feito pelo professor Frankel de Joanesburgo. Mas a pesquisa (1837 páginas) e o volume de Frankel (487 páginas) foram publicados em 1938 pelo Instituto Real. Eles constituem uma acusação contra a civilização capitalista impossível de se encontrar fora das páginas de escritores marxistas.

Frankel escreve com a liberdade de alguém sem responsabilidade oficial. Hailey tem a cautela de um velho servidor civil, com os eufemismos dos ingleses e o modo de expressão evangélico que é parte do fardo imperialista britânico. Ambos, contudo, chegam a conclusões idênticas. O imperialismo na África está falido. Há apenas uma forma de salvar a situação, que é aumentar o padrão de vida, cultura e produtividade dos africanos nativos. O significado profundo dessa conclusão econômica só pode ser compreendido tendo em vista o pano de fundo político da África, pois a primeira lei de existência e autopreservação de todo europeu na África é que a existência da civilização europeia na África (e por civilização europeia essas pessoas entendem, é claro, o imperialismo europeu) depende de um fato: a manutenção dos africanos na posição de inferioridade, segregação e atraso em que ele se encontra atualmente. Esse raciocínio burguês, ao separar o que é dialeticamente inseparável, chega à conclusão de que, para salvar a civilização na África, é necessário destruí-la.

O que é a África?

A pesquisa de Lord Hailey engloba toda a África ao sul do Saara e não se restringiu às colônias britânicas, pois os britânicos queriam descobrir oficialmente tudo o que se podia saber sobre a África. A população africana desse território é estimada em cem milhões. Desse montante, a população europeia é de cerca de dois milhões duzentos e cinquenta mil. Destes, mais de dois milhões estão na União da África do Sul. Quanto ao restante, podemos encontrar números como estes: na África Ocidental Francesa2 a população é de cerca de 14 milhões, e a população branca é dezenove mil; no Congo Belga, população de 10 milhões, a população branca é de dezoito mil. Na Nigéria, a população africana é de dezenove milhões, e a população branca é de cinco mil. Ao norte dos Zanibes a população branca mal chega a cem mil. A área dos territórios é cerca de oito milhões duzentas e sessenta mil milhas quadradas, três vezes o tamanho dos Estados Unidos. A África  colonial é em sua maior parte um vasto campo de concentração, com alguns milhares de feitores brancos. Na Índia há uma classe de industriais e latifundiários indianos, na China também. Na África há apenas escravos e capatazes. O governo britânico despertou três anos atrás (teoricamente) para o fato de que isso não pode se sustentar, pois não rende.

O fiasco da ferrovia

O sistema mercantilista havia explorado a África como uma área de comércio, essencialmente de escravos, e também de pacotille, pequenos pedações de vidro, algodão colorido e outras tranqueiras pelos quais os escravos negros eram trocados. Com o declínio do sistema mercantil depois da guerra de independência americana, a África retrocedeu do quadro do imperialismo europeu até o período de exportação de capitais. Em 1935, o total de investimentos de capital do exterior chegava a $6.111.000.000. Dessa quantia, 77%, ou $4.705.000.000 está em territórios britânicos e os investidores britânicos supriram 75% desse total. No comércio é o mesmo. Em 1935 o comércio total dos territórios britânicos conformava 85% do total do comércio na África. Em 1907 era 84% e por anos nunca caiu abaixo de 80%.

A Inglaterra domina totalmente a África nativa, sendo as colônias francesas, belgas e portuguesas meros satélites desse monstro imperialista inchado. De um total de mais de seis bilhões de dólares investidos do exterior na África, quase metade consiste em empréstimos e subvenções para governos, enquanto um pouco menos de um quarto do total, $1.335.000.000 para ser exato, foi investido em ferrovias, que estão penduradas como pesadas correntes sobre os capitalistas europeus e o trabalho negro na África. A África não precisava delas. Ferrovias devem servir áreas industriais florescentes, ou regiões agrícolas densamente povoadas, ou devem abrir novos territórios (como nos Estados Unidos) ao longo do qual uma população próspera se desenvolve e fornece movimento à ferrovia. Exceto nas regiões mineradoras da África do Sul, todas essas condições estão ausentes. Ainda assim as ferrovias eram necessárias, para o benefício dos investidores europeus e da indústria pesada, para algum propósito vago conhecido como a “abertura” do continente, e para propósitos estratégicos de suma importância. O resultado é que em quase todas as colônias hoje as ferrovias foram construídas pelo governo e, até hoje, apenas o governo pode arcar com os custos de sua operação. A maioria delas foi construída além do necessário. Como resultado desse gasto as ferrovias foram sobrecarregadas com obrigações de lucros que causam taxas excessivamente pesadas sobre o tráfego importado ou local.

Capital e escravidão

Na tentativa de improvisar a produção para exportação que é necessária para se adequar essas pesadas necessidades de lucro, vários tipos de produções antieconômicas foram levadas às ferrovias. Antieconômicas em si, principalmente do tipo de uma única colheita, e sujeitas às flutuações do mercado mundial, algumas dessas agora se tornaram fardos sobre os territórios em questão. Como resultado, Frankel chega à seguinte conclusão, digna de nota:

Os governos foram levados uma e outra vez à dificuldade fundamental de que o investimento de capital em si não pode levar ao desenvolvimento econômico, mas requer uma expansão concomitante de outros fatores de produção. O capital sozinho não pode resolver o problema econômico.

Em outras palavras: não se pode esperar que o capital floresça se o africano nativo permanecer um escravo. Em todas as colônias as reclamações são as mesmas. Em 1934 o administrador-geral das Ferrovias Governamentais da Nigéria relatou:

O comércio da colônia ainda não está desenvolvido ao ponto da capacidade de transporte da ferrovia e sua extensão. Nenhuma companhia ferroviária privada poderia ter construído uma extensão tão ampla, e toda a colônia se beneficiou enormemente da facilidade de transporte. Se colocássemos lado a lado os custos anuais da ferrovia e a renda da população a que serve, ficaria claro que, sem a descoberta de um valioso veio de minério, a principal direção em que os custos anuais poderiam ser supridos pelos ganhos com a ferrovia deve ser o transporte de um grande volume de produtos agrícolas, e a totalidade desse volume onde quer que a ferrovia possa chegar. Um volume suficiente de produtos de exportação não existe atualmente…

A Nigéria é uma das colônias mais prósperas, e isso se deve principalmente ao fato de ter um campesinato nativo extenso. Os relatórios das ferrovias do Congo francês e belga dizem exatamente o mesmo, apenas o dizem em francês e com mais desespero, porque o campesinato nativo está ausente nessas duas imensas colônias. Frankel conclui:

Em geral, as rodovias africanas foram construídas sobre a base de uma visão excessivamente otimista da taxa de desenvolvimento econômico dos territórios que servem… . Caso não se descubram novos recursos minerais, uma expansão adicional considerável das ferrovias num futuro próximo não pode ser garantida de um ponto de vista econômico.

Em outras palavras, adeus às ferrovias.

Parte II

O carrossel da mineração

Em 1935, a exportação de ouro representava 47,6% da exportação total da África. A maior parte desse ouro foi produzida na União da África do Sul. Esse estado africano fabulosamente “rico”, com 90% da população branca da África colonial, e a inveja de todas as outras colônias africanas, é na realidade uma das economias mais instáveis do mundo, e ninguém sabe disso melhor do que os próprios sul-africanos. Até a descoberta dos diamantes em 1857, o desenvolvimento econômico da África do Sul havia sido quase exclusivamente agrícola, e a África do Sul não tinha importância alguma. Com o desenvolvimento dos campos de diamante e posteriormente de ouro, toda a economia gradualmente se tornou dependente da renda dessas indústrias. Por 25 anos a legislatura e o eleitorado tem declarado que o país deve, para sua própria salvação futura, encontrar outras formas de renda que não sejam a mineração. Eles falharam completamente. Com exceção da lã, hoje, no vasto país, não há uma única commodity agrícola importante que não dependa de proteção ou manutenção de uma estrutura de preço artificial baseada em subsídio direto.

Exatamente a mesma situação existe na indústria, metade da qual entraria em colapso se não fosse a indústria mineira. Sobre essa base insalubre foi enxertada outra malformação econômica perversa. Em 1934 e 1935, 41% dos trabalhadores empregados em indústrias privadas eram europeus. Eles recebiam 74% dos salários pagos, equivalente a $1.010 per capita. Os 59% dos trabalhadores restantes eram não-europeus, que obtinham 26% dos salários, equivalente a $245 per capita. Nos empreendimentos governamentais, os europeus, consistindo em 66,3% dos empregados, obtinham 91% do total salarial. Os 9% restantes dos salários eram divididos entre os 33,7% dos não-europeus empregados.

O movimento operário organizado, ou seja, a aristocracia dos trabalhadores, logo após a primeira guerra mundial, forçou a aprovação do Color Bar Act3, que proibia os africanos de ocuparem postos de trabalho qualificados. Foram apoiados pelos reacionários fazendeiros sul-africanos, que mantém a maioria dos nativos em suas fazendas em uma situação de peonagem e escravidão. Assim, as características distintivas do trabalho sul-africano são: 1) uma baixa produtividade média, 2) uma estrutura salarial artificial baseada na renda do ouro e diamantes e 3) a literal pauperização e degradação de seis milhões de negros por menos da metade da população branca de dois milhões; menos da metade porque há uma imensa massa de pobres brancos. Na própria indústria mineira a taxa chega a proporções incríveis. O salário médio do empregado europeu nas minas é cerca de $155 por mês. O do nativo é cerca de $20. O título oficial dessa discriminação é a política do “trabalho civilizado”.

Uma política desastrosa

Lord Hailey sabe que esse é um negócio desastroso. Ele sabe que tanto na indústria quanto na agricultura, em última instância o produtor mais eficiente e menos custoso seria o africano liberto. Como ele coloca, “… o peso cumulativo da evidência parece inspirar dúvidas…” quanto a se a agricultura europeia poderia chegar a ser capaz de ter uma existência modesta como resultado de um trabalho duro, mesmo nas melhores circunstâncias, e ser uma constante fonte de rendimentos do governo, até mesmo nas piores. Ele admite que “mesmo que existam justificativas teóricas e políticas para a adoção da política do ‘trabalho civilizado’, a necessidade disso deve, entretanto, ser lamentada”. Hailey deveria receber a tarefa de explicar para a aristocracia operária e os fazendeiros Boers exatamente o quão benéfica seria uma mudança. Nenhum eufemismo o salvaria do linchamento.

A importância da África do Sul é esta: a maior parte das outras colônias da África ou são construídas sob o mesmo modelo, ou imploram aos céus para que possam ser. É por isso que elas suspiram sonhando com a descoberta de algum veio de minério. Elas poderiam então pagar os custos das ferrovias e viver do restante, enquanto os nativos realizariam o trabalho nas minas. Onde não há sindicatos para subsidiá-lo, o europeu está encarando de frente o fato de que ele não pode competir com o africano nativo. Ele pode impedir o africano de cultivar café, como no Quênia (“devido à incapacidade física e mental”) mas o mercado mundial, tal como é, se recusa a pagar simultaneamente ao africano para trabalhar e ao europeu para viver como um cavalheiro, bebendo whisky e jogando polo. “Em toda a parte, portanto” – diz Hailey – “o progresso do sistema econômico europeu provavelmente se ligará, no futuro, com a exploração das minas, com o comércio e com certas formas especializadas de produção agrícola que geralmente necessitam de capital para o seu desenvolvimento.” Em toda a parte, nas duas Rodésias, nos Congos francês e belga, na África ocidental francesa e britânica, exceto na África do Sul (e na Rodésia do Sul). Nós vimos do que essas áreas dependem. Seu “ideal” é a supressão implacável do nativo.

Hailey murmura depreciativamente que a “possibilidade de alcançar completamente esse ideal depende de fatores econômicos (tais como, por exemplo, a continuidade da produção de ouro) que podem, eles mesmos, estar sujeitos a modificações”. Hoje certamente parece, três anos após Hailey ter escrito isso, que a exportação sul-africana de ouro pode logo estar “sujeita a modificações”. Quanto às outras comunidades não-mineradoras, sua “futura prosperidade econômica… depende mais do desenvolvimento geral da atividade econômica nativa do que do resultado do empreendimento europeu.” E o mais importante de tudo, para o imperialismo britânico, ele diz terminantemente que não há outro campo para a exportação de capital que não seja a mineração. Após um pouco mais de 50 anos e a degradação de uma população sem paralelo na história do capitalismo moderno, esse é o ponto que os imperialistas alcançaram.

Condição dos trabalhadores

Hailey tinha que ser cauteloso. Frankel não tinha motivo para o ser. Em seu trabalho, recheado de tabelas estatísticas, Frankel tem um tema. Ele o diz na página 7. A tarefa é “alargar as ideias e elevar as possibilidades criativas dos cidadãos em uma sociedade mais ampla. Perceber isso é a chave para um estadista colonial.” Na África do Sul, e em toda a África oriental, o africano está ligado por uma série de leis a empregadores particulares, em uma escravidão virtual. Diz Frankel:

Não é exagero dizer que uma causa básica da baixa renda média dos habitantes da União é a falta de ‘mobilidade econômica’ de seus trabalhadores, tanto negros quanto brancos. Nós estamos de volta ao ponto de partida desse estudo – progresso envolve mudança; inibir a mudança irá inibir o progresso.

Diferentemente de Hailey, ele pede por investimento de capital, mesmo que não gere lucro imediato; mas com uma condição:

Em último caso, contudo, o futuro do investimento de capital, como o futuro de todo o progresso econômico africano, vai depender de libertar os povos africanos de todos os fatores que colocaram seu progresso em xeque no passado, e as restrições artificiais que em alguns territórios ainda previnem o desenvolvimento de suas habilidades… Se a experiência do século XX na África provou alguma coisa, é que a riqueza da África mal foi descoberta, simplesmente porque ela jaz profundamente no próprio solo africano. Somente por esforços de cooperação de africanos e europeus ela será desentranhada… A cortina mal se levantou no cenário africano… De fato, o século XX abre a era de atividade construtiva e criativa por poderes ocidentais na África.

Frankel se deparou com uma tremenda conclusão aqui. Ele não fala sobre “melhorar o padrão de vida” e panaceias primitivas do gênero para as contradições do capitalismo. Ele deixou o terreno da distribuição e atacou o problema em sua raiz – no ponto da produção.

O marxismo e as colônias

O que está acontecendo na África e o que o imperialismo britânico pensa sobre isso diz respeito a cada trabalhador americano, não apenas aos negros. As contradições da produção capitalista se expressam na concentração de riqueza em um extremo da sociedade e de miséria no outro. Cada trabalhador americano pensante conhece esse fato. Mas essas contradições se expressam também na concentração de riqueza em nações como os Estados Unidos, a Inglaterra, a França e a Bélgica, e a concentração de miséria em países pobres como a Índia, China e África. Há cem milhões de africanos vivendo na indigência; mais de quatrocentos milhões de chineses, cerca de quatrocentos milhões de indianos. Roosevelt fala sobre um terço da nação.4 Essas pessoas constituem metade do mundo. É o capitalismo que as está destruindo conforme destrói o mundo. Ele agora confessou que está falido na África. Elas devem, portanto, se livrar do capitalismo – pela mesma razão que o trabalhador no ocidente deve se livrar do capitalismo, para usar “capital” e não ser usado por ele.

Frankel se deparou com uma descoberta, mas ele cometeu um erro profundo em chamar aquilo que a África precisa de “capital”. Quase cem anos atrás, em Trabalho assalariado e capital, Marx definiu capital. É trabalho acumulado. E terra, não trabalho acumulado, era o principal meio de produção em todas as sociedades anteriores à sociedade capitalista. O capital, no entanto, é trabalho acumulado em uma relação social definida. “É somente o domínio de trabalho acumulado prévio materializado sobre trabalho vivo imediato que imprime ao trabalho acumulado a característica do capital”.

O capital não consiste no fato de que trabalho acumulado serve ao trabalho vivo como meio para a nova produção. Ele consiste no fato de que o trabalho vivo serve ao trabalho acumulado como forma de preservar e multiplicar seu valor de troca.

Como Marx expressa no Manifesto comunista:

Na sociedade burguesa o trabalho vivo é sempre um meio de aumentar o trabalho acumulado. Na sociedade comunista o trabalho acumulado é um meio de ampliar, enriquecer e promover a existência dos trabalhadores.5

Frankel quer promover, alargar e enriquecer a existência dos africanos, não para salvar sua alma imortal mas para salvar a economia africana. Assim, o que Frankel está demandando não é capital, mas comunismo. Hailey, contudo, apenas observa: para isso, nada mais de trabalho acumulado. Como de costume, são os marxistas e os burgueses que encaram a realidade.

A inviabilidade inerente da relação capitalista é vista de forma muito resoluta na África. Isso se dá pelo estágio avançado de desenvolvimento do capital europeu quando o capitalismo começou a penetrar na África, o caráter primitivo do trabalho africano e o acréscimo da aguda diferenciação racial. O que Frankel não sabe é que o que ele vê tão claramente na África havia sido visto por Marx três gerações antes, não em relação à África, mas a toda a sociedade capitalista. Marx tinha pouco a dizer sobre a sociedade socialista, particularmente sobre sua base, a organização socialista do trabalho. A nova organização do trabalho seria conquistada pelo proletariado e, como Lênin disse mais enfaticamente, somente o proletariado poderia conquistá-la. Mas, para Marx, o problema da África era o problema da sociedade capitalista, e somente o socialismo poderia resolvê-lo.

A atual riqueza da sociedade, e a possibilidade de expansão contínua de seu processo de reprodução não dependem da mais-valia, mas de sua produtividade e das condições mais ou menos férteis de produção sob as quais ela se dá.6

Mas do começo ao fim ele enfatiza que essa produtividade seria alcançada pelo desenvolvimento do homem como um indivíduo. Sob o socialismo, o consumo do homem seria governado pela “produtividade social de seu próprio trabalho individual em sua capacidade enquanto verdadeiramente social” e até o alcance “exigido pelo desenvolvimento pleno de sua individualidade”7. Ele raramente falava do socialismo sem voltar a isto e talvez sua afirmação mais enfática com esse mesmo efeito seja encontrada em seu capítulo sobre a “Maquinaria e a indústria moderna”:

a grande indústria moderna, precisamente por suas mesmas catástrofes, converte em questão de vida ou morte a necessidade de reconhecer como lei social geral da produção a mudança dos trabalhos e, consequentemente, a maior polivalência possível dos trabalhadores, fazendo, ao mesmo tempo, com que as condições se adaptem à aplicação normal dessa lei. Ela transforma numa questão de vida ou morte a substituição dessa realizada monstruosa, na qual uma miserável população trabalhadora é mantida como reserva, pronta a satisfazer as necessidades mutáveis de exploração que experimenta o capital, pela disponibilidade absoluta do homem para cumprir as exigências variáveis do trabalho; a substituição do indivíduo parcial, mero portador de uma função social de detalhe, pelo indivíduo plenamente desenvolvido, para o qual as diversas funções sócias são modos alternantes de atividade.8

A única solução

É a única solução para a crise permanente. Marx não usava frases como “vida ou morte” de maneira leviana. Deixemos o trabalho vivo utilizar o trabalho acumulado para se desenvolver e o problema da expansão será resolvido. Mas, deixemos o trabalho acumulado usar o trabalho vivo apenas para a expansão do trabalho acumulado e ele automaticamente arruinará sua capacidade de se expandir. Não há necessidade aqui de apontar as pesquisas monumentais e a exatidão científica com as quais Marx demonstra a inevitabilidade de suas conclusões. É crédito de Frankel que ele tenha chegado às mesmas conclusões depois do mais minucioso exame já feito do investimento capitalista na África. O seu erro é acreditar que esse trabalho acumulado pode chegar a estar à disposição do africano por outro meio que não seja a revolução socialista na África e na Europa.

Mais uma coisa deve ser dita. Todos os grandes comunistas souberam que o homem é a maior de todas as forças produtivas. No colapso geral da ideologia revolucionária que marchou ao lado da degeneração da revolução russa, houve o crescimento de um pseudo-marxismo ou análise “econômica” que vê todo tipo de possibilidades na reorganização técnica e institucional da sociedade, sem a menor consideração pelo papel do trabalho. O mais recente é o Sr. Burnham, que nos informa que a sociedade administrativa vai resolver os problemas da expansão nos países coloniais que o “capitalismo” não pôde resolver. Como? Ele não diz. Hitler, no entanto, nos diz que

A livre escolha de ofícios e profissões pelos negros leva à assimilação social, que por sua vez produz assimilação racial. A ocupação dos povos coloniais negros e sua função no processo de trabalho da ‘nova ordem’ será, portanto, inteiramente determinada pelos alemães.

E novamente, “[Negros] não terão direitos eleitorais ativos ou passivos no império colonial germânico; terão acesso proibido a ferrovias, bondes, restaurantes, cinemas e todos os estabelecimentos públicos.”

Em outras palavras, Hitler propõe expandir a economia africana pela continuação da degradação do trabalho africano, a mesma velha política falida do imperialismo britânico. É uma contradição que pode ser resolvida pelo socialismo e não pelas divisões de panzers9 de Hitler, a propaganda racial de Goebbels.

 

Notas

1. James refere-se ao processo que ficou conhecido como Guerra Popular Indiana, iniciada como um movimento de vanguarda intelectual ao final do séc. XIX e que se arrasta por toda a primeira metade do séc. XX (1857-1947), encerrando-se, por fim, com o estabelecimento de um governo independente em face da derrota das estratégias mais radicais que disputavam os rumos da luta de libertação nacional (N.E.).

2. A África Ocidental Francesa foi uma federação composta por oito territórios coloniais que a França controlou no continente africano: Mauritânia, Senegal, Sudão Francês (atualmente Mali), Guiné, Costa do Marfim, Nigéria, Alto Volta (atualmente Burkina Faso) e Daomé (atualmente Benim). Existiu entre 1895-1958.

3.  O nome oficial do Colour Bar Act é “Mines and Works Act”, uma lei aprovada na África do Sul em 1911, com adendos de 1912 e 1926. Seu propósito era de estabelecer restrições para que negros assumissem determinados empregos, particularmente os empregos qualificados com melhor remuneração, que ficariam reservados exclusivamente para brancos (N.E.)

4. Em seu discurso de posse do segundo mandato presidencial, em 1937, Roosevelt disse “Eu vejo um terço de uma nação mal alojado, mal vestido, mal nutrido. O teste de nosso progresso não é se nós adicionamos mais à abundância daqueles que têm muito; é se nós fornecemos bastante para aqueles que têm muito pouco”. Essa citação inspirou a peça “One Third of a Nation” [Um terço da nação], de 1938, do chamado “Living Newspaper” [Jornal vivo], um filão do Projeto Federal de Teatro; financiado pelo New Deal de Roosevelt, existiu entre 1935-1939 (N.E.).

5.  Karl Marx, Friedrich Engels. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010. p. 53 (N.E.).

6 : Karl Marx, Capital: Volume II. Penguin Classics, London, 1º edição, 1981. (tradução nossa – N.E.)

7. Karl Marx, Capital: Volume III. Peguin Classics, London, 1º edição, 1981. (tradução nossa – N.E.).

8. Karl Marx, O Capital, Vol I, p. 558, Boitempo Editorial, 1ª ed. 2013 (N.E.).

9.  “Panzer” é uma abreviação do termo alemão “Panzerkampfwagenˆ”, que pode ser traduzido como “veículo blindado de combate”. Eram o nome dados aos tanques do exército nazista, e que integraram a famosa Sétima Divisão Panzer, criada em 1939 e responsável por diversas vitórias nazistas participando da tática de guerra da “blietzkrieg” (guerra-relâmpago) (N.E.)

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