Simone Ishibashi
Há quase 700 dias do seu início o genocídio sionista contra os palestinos segue chocando o mundo, e fazendo cada vez mais vítimas das formas mais atrozes. Contam-se oficialmente 56,5 mil mortos, 134 mil feridos e 11 mil desaparecidos pelas cifras oficiais, e estima-se que esse número seja muito mais elevado.Enquanto essas linhas são escritas Israel anunciou uma “pausa tática” que não deve durar mais que 10 horas para permitir que algumas aeronaves enviadas pela Jordânia e pelos Emirados Árabes Unidos pudessem sobrevoar Gaza para lançar comida. Esta ação se dá em um marco de aceleração da corrosão da legitimidade israelense frente à opinião pública mundial, após as denúncias do uso da fome como instrumento do genocídio, e em meio ao sequestro e espancamento dos ativistas da Flotilha da Liberdade, que mais uma vez tentavam romper o criminoso cerco à Gaza. O papel dos Estados Unidos e das potências imperialistas europeias como sustentadores políticos e financiadores do “genocídio transmitido a 4K” é denunciado pelo potente movimento pró-palestina que tem tomado as ruas do mundo, e que teve nos recentes ataques de Israel-EUA ao Irã o seu último capítulo. No entanto, existe um outro ator que tem sido fundamental, e menos debatido, para favorecer que o genocídio contra o povo palestino se perpetue: as burguesias árabes e seus regimes. A continuidade do genocídio palestino por Israel apoiado pelos Estados Unidos não teria atingido toda a extensão atual, tanto temporal como em termos de brutalidade, sem a colaboração direta e indireta dessas burguesias. Ainda que parte delas usem de muita demagogia em relação à causa palestina, na prática tem colaborado, silenciado e até mesmo explorado a Palestina. Neste breve artigo trazemos alguns exemplos, recentes e históricos, dessa trajetória de vacilações, colaboracionismo com Israel e os EUA, e repressão aos seus próprios povos que buscam irmanar-se com a causa palestina.
A legitimação do genocídio por detrás da farsa diplomática
No dia 29 de julho ocorreu uma conferência presidida pela França e pela Arábia Saudita na sede das Nações Unidas em Nova York que reuniu dezessete países, entre os quais o Brasil, e a Liga Árabe composta por Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Iêmen, Iraque, Jordânia, Kuwait, Líbano, Líbia, Marrocos, Qatar, Síria, Tunísia, além da Somália, Sudão, Comores e Djibouti.
Essa reunião teve como pontos principais a represália à ação do Hamas em 07 de outubro de 2023, e um chamado a que esta organização ponha “fim ao controle do território (da Faixa de Gaza) e entregue as armas à Autoridade Nacional Palestina, com participação e apoio internacional seguindo o objetivo de um Estado palestino soberano e independente”. A França, que segue perseguindo aqueles que se manifestam em defesa da Palestina dentro de seu território, classificou esse chamado como “histórico”, destacando que “pela primeira vez os países árabes e do Oriente Médio condenam o 7 de outubro”.
Essas declarações se dão em meio ao escandaloso cerco mantido por Israel com a colaboração dos governos árabes fronteiriços na Faixa de Gaza, que detém 6 mil caminhões com ajuda humanitária para Gaza, impedindo-os de entrar. Este cerco é responsável por matar de fome cerca de 147 palestinos, dos quais 88 crianças e bebês apenas na última semana. Ao se posicionar dessa forma, as burguesias árabes fazem eco àqueles que justificam o genocídio ao povo palestino como uma resposta aos atos de 7 de outubro do Hamas.
Algo absolutamente falso, já que Israel mata e rouba as terras palestinas desde a sua fundação como enclave imperialista e colonialista nas terras da Palestina histórica. Ademais, o objetivo de acabar com os palestinos mediante um genocídio é claramente defendido por membros knesset (parlamento judeu) mesmo antes de 7 de outubro. Há uma profusão de declarações de membros do governo israelense em redes sociais, tanto na atualidade como de até 20 anos atrás, em que declaram que “não há inocentes em Gaza”, “as crianças palestinas devem ser alvos, porque um dia elas crescerão”, e que os palestinos seriam “animais-humanos e deveriam ser tratados como tal”.
Mesmo assim, as burguesias árabes escrevem mais um capítulo de uma longa história de conciliação com os sionistas, e ao lado dos governos imperialistas europeus que perseguem os movimentos pró-palestina em seus países, deixam de assinalar o óbvio: que são aqueles que cometem um genocídio que deveriam ser o alvo do clamor pelo seu desarmamento. Além disso, agitam a falsa promessa de um “Estado palestino” coexistindo com Israel, sem garantir a unidade dos territórios históricos, e com um território ainda mais golpeado pela expansão dos colonos sionistas durante os 600 dias de genocídio.
Egito: como o regime de Fatah Abdel Al-Sissi colabora com Israel
O Egito figura talvez como o exemplo mais flagrante. A postura do Egito em relação à causa palestina chamou a atenção recentemente por conta de uma demonstração prática de colaboração com Israel, ao impedir que a Marcha Global dos Povos e o Comboio Sumud chegassem à fronteira da Faixa de Gaza por Raffah em 15 de junho. Estas iniciativas reuniram ativistas de diversas partes do mundo, que buscavam romper o criminoso cerco à Faixa de Gaza imposto por Israel, deslocando-se por rotas dentro do Egito.
Mas, como foi divulgado por inúmeros ativistas e organizações de diversas partes do mundo – e ignorado pelos grandes meios – esta iniciativa não pôde realizar seu objetivo, graças à duríssima repressão realizada pelo governo egípcio. Já no Cairo diversas pessoas foram presas, algumas chegaram a ficar desaparecidas, e outras ainda, como parte da delegação do Esquerda Diário, deportada no próprio aeroporto. As que conseguiram entrar no país enfrentaram bloqueios e ameaças constantes, e foram impedidas de se aproximarem de Raffah, onde está a fronteira com Gaza.
E enquanto o marechal Fatah Abdel Al-Sissi, – que governa o Egito desde 2013 quando assume o poder após um golpe cívico-militar- , não se dispôs a prestar qualquer esclarecimento ou declaração sobre essa enorme repressão, coube aos porta-vozes de Netanyahu anunciarem que a Marcha não poderia prosseguir. Declaração esta que foi fielmente cumprida por Al-Sissi, demonstrando o nível de subserviência do Egito aos genocidas do governo israelense.
Mas este episódio, por si só gravíssimo, não é um ato isolado no governo egípcio. Muito pelo contrário. Desde muito tempo a ditadura de Sissi, apesar da demagogia pró-palestina em seus meios de comunicação internos, colabora com os sionistas. E mesmo antes, o Egito tem sido crucial para sustentar a ordem sob a qual Israel assentou seu projeto colonialista. Em verdade a normalização das relações Israel-Egito foi um fator de desmobilização da resistência árabe, e crucial para assegurar a permanência do projeto colonial sionista.
As relações diplomáticas entre os dois países foram restabelecidas em 1979 com um tratado de paz. Mas sofreram abalos parciais em 1987 e 2000, ocasiões que marcam as duas Intifadas palestinas, quando o Egito trouxe de volta seus embaixadores em Israel. Outro episódio ocorreu em 2003, quando drones egípcios sobrevoaram o espaço aéreo israelense sobre as instalações de um núcleo de pesquisa nuclear.
Com a Primavera Árabe de 2011 a ditadura de Hosni Mubarak sustentada pelos EUA foi derrubada, tendo em seu lugar um breve governo chefiado pela Irmandade Muçulmana. Ações de colaboração militar, como a coordenação entre o Egito e Israel na Operação Águia, destinada a enfrentar grupos islâmicos na Península do Sinai, foram frequentes entre os turbulentos anos de 2011 e 2012. Mas a Irmandade Muçulmana rapidamente cedeu frente ao golpe cívico-militar que levou Fatah Abdel Al-Sissi, atual presidente, ao poder. Sissi renovou os laços com os Estados Unidos, de quem segue recebendo um financiamento de US$1,3 bilhões no ano de 2024. Como moeda de troca os votos de paz com Israel são mantidos e a fronteira com a Faixa de Gaza segue rigorosamente fechada. Além disso, são recorrentes as apreensões de armamentos e túneis que supostamente se destinariam ao Hamas.
Ainda que em suas declarações o governo egípcio se coloque como crítico ao genocídio israelense, devido em grande parte à massiva solidariedade popular que o povo egípcio mantêm com os palestinos, o fato é que os laços econômicos revelam a subserviência do governo egípcio a Israel. Em nenhum momento o governo egícipcio demonstrou atuar em prol dos interesses do povo palestino, seja em meio ao genocídio, seja anteriormente.
Um exemplo disso é o fato de que o Egito vinha explorando, ao lado de Israel e do Chipre, o campo de gás Gaza Marine situado na Faixa de Gaza. O Gaza Marine tem cerca de 28,3 bilhões de m³ de gás, e poderia render até US$7 bilhões por ano ao povo palestino, resolvendo sua carência por energia. Entretanto, nos contratos de exploração que estavam sendo negociados entre Israel, Chipre e Egito anterior ao genocídio, as necessidades dos palestinos sequer eram consideradas, bem como não o são neste momento em que o mundo se choca com as revoltantes imagens de palestinos morrendo, seja de fome, ou então assassinados pelo exército de Israel (IDF) enquanto buscam comida.
Esta escandalosa relação com Israel na exploração das riquezas palestinas combina-se ainda, como foi citado acima, a um enorme financiamento estadunidense prestado ao longo de décadas, e renovado tanto pelos presidentes democratas, como republicanos. Em 2024 os EUA concederam ao Egito cerca de US$1,3 bilhão em ajuda militar, sob o argumento de que esse investimento serviria para garantir “o interesse da segurança nacional dos EUA”. Durante a pausa de 90 dias em prestação de auxílios internacionais determinada por Trump no início deste ano, uma das exceções anunciadas foram justamente o Egito e Israel, que seguiram recebendo seus enormes montantes, justamente para garantir o status quo estadunidense na região embasado nas suas políticas em meio ao genocídio do povo palestino.
Os Acordos de Abraão
Outro marco na colaboração da burguesia árabe com os sionistas de Israel é o Acordo de Abraão, firmado em setembro de 2020 inicialmente entre Israel, Emirados Árabes Unidos e o Bahrein com mediação dos Estados Unidos. Como parte da política de Trump para o Oriente Médio, e sua estratégia de dar cada vez mais margem de manobra a Netanyahu em uma tentativa de remodelar por esta via toda a geopolítica regional, o acordo tinha como objetivo fundamental fazer com que os Emirados Árabes e o Bahrein reconhecessem a “soberania” de Israel. Concretamente isso se traduzia emi criar uma correlação de forças mais favorável aos sionistas para forçar os palestinos a se disciplinarem a Israel em um contexto pré-genocídio. Estes objetivos ficaram explícitos com Trump ratificando na ocasião que Jerusalém permaneceria como capital de Israel, medida que quando decretada gerou grande polêmica já que além do peso simbólico fere abertamente a expectativa dos palestinos em reaver parte considerada crucial de seu território histórico.
O Acordo de Abraão foi, portanto, o primeiro reconhecimento oficial de Israel por parte de outras nações árabes desde o tratado de paz Israel-Jordânia, também conhecido como Tratado de Wadi Arabia, firmado após a derrota dos árabes na guerra de 1948. Já em dezembro do mesmo ano de 2020 foi assinado um outro acordo de normalização de relações entre Israel, desta vez com o Marrocos, cuja moeda de troca foi o reconhecimento do Saara Ocidental como território marroquino. O Acordo de Abraão foi denunciado, portanto, pelos palestinos e negado em sua gênese pela reacionária monarquia da Arábia Saudita, que via nesta tentativa uma projeção dos interesses regionais israelenses em detrimento dos seus próprios.
Embora o sentido do acordo tenha sido sacramentar a subserviência dos países árabes a Israel, como o próprio nome do acordo sugere, as relações econômicas entre sionistas e burguesias árabes já datavam de períodos anteriores. Israel e os Emirados Árabes já mantinham extenso comércio de diamantes, indústrias de tecnologia e vigilância. Mas a partir dos Acordos de Abraão a especulação financeira se eleva, com empresas israelenses como a OurCrowd e Liquidity Group atuando no mercado financeiro dos Emirados, contando para isso com aportes governamentais de dezenas de milhões de dólares. Além disso, o secretário do tesouro de Donald Trump, Steve Mnuchin, e o seu embaixador em Israel, David Friedman, participaram em fundos que receberam milhões de dólares em investimentos dos governos dos Emirados e do Qatar.
Parte dos analistas dos grandes meios capitalistas rapidamente concluiu que as ações do Hamas em 7 de outubro visavam acabar com os Acordos de Abraão, e mais especificamente com a aproximação entre a Arábia Saudita e Israel. A paralisação deste processo deveria impactar também as relações entre os sionistas e o Bahrein e o Marrocos. Porém, ainda que de fato os Acordos de Abraão sejam a expressão de um pacto reacionário entre Israel e parte dos regimes árabes regressivos, como a monarquia saudita, reduzir as motivações dos acontecimentos de outubro de 2023 a isso é parte da tentativa de apagar os 77 anos de ocupação colonialista extremamente violenta à qual a população palestina está submetida. E não apenas isso, mas escamotear que isso só foi possível com as medidas adotadas pelos regimes árabes, que cada qual à sua maneira se acomodaram, e até mesmo se beneficiaram, com a existência do Estado de Israel.
Jordânia: paz fria e funcional a Israel
A Jordânia é um dos países cuja colaboração com Israel vem se tornando cada vez mais aberta, como quando interceptou drones iranianos em seu espaço aéreo na recente guerra lançada por Israel e EUA em junho. Declarações de que interceptariam quantos mais drones e mísseis sobrevoassem seu território, subentendendo-se que com exceção dos estadunidenses ou israelenses, foram dadas pela monarquia governante colocada no poder durante o período de dominação britânica no Oriente Médio.
A monarquia hachemita, mais especificamente na figura da rainha Raina, vem desde o começo do genocício dando declarações contrárias à Israel. Este movimento atende ao fato de que metade de sua população é de origem palestina, e não brindar sequer uma represália retórica poderia levar a crises internas. No entanto, a exemplo do Egito, tem mantido suas fronteiras rigorosamente fechadas, e expressa abertamente que uma das grandes preocupações é justamente não receber um contingente maior de palestinos.
Esta postura não data de eventos recentes. Mesmo durante a Guerra dos Seis Dias em 1967 o rei Hussein, pai do atual rei Abdullah atuou de forma relutante, tendo estabelecido diálogos secretos com Israel durante os anos anteriores. Como assinala o Middle East Monitor: “antes da Guerra do Yom Kippur, em 1973, o rei “foi levado de helicóptero para um prédio do Mossad nos arredores de Tel Aviv, juntamente com seu primeiro-ministro, Ziad Rifai”, onde informou às autoridades israelenses, incluindo a primeira-ministra Golda Meir, sobre a ofensiva planejada pela Síria e o apoio egípcio”.
A Jordânia foi o segundo país árabe, apenas após o Egito, a normalizar as relações com Israel. Suas represálias em relação ao genocídio atendem antes ao receio de que as ações sionistas instalem uma dinâmica de mobilização popular, como foi a Primavera Árabe. Consequentemente, o rei Abdullah vem perseguindo as manifestações em defesa de Gaza dentro de seu território, e chegou ao absurdo de proibir símbolos que já se tornaram massivos em ações mundo afora, como a bandeira palestina e o tradicional lenço palestino, keffiyeh.
Entre a luta e a repressão: a potência do povo árabe frente à causa palestina
A subserviência dos governos e das burguesias árabes contrasta com as demonstrações de solidariedade das suas populações, que desde o início do genocídio protagonizaram diversas manifestações, algumas delas massivas. Um exemplo foram as enormes manifestações ocorridas logo após o primeiro bombardeio israelense ao hospital Al-Ahli, que na ocasião deixou 471 mortos, e que foi seguida por atos na Jordânia, Tunísia, Líbano, Iêmen, Bahrein, Iraque, Egito e Líbia, além das cidades palestinas de Ramallah e Nablus na Cisjordânia. Muito embora após o ataque imperialista-sionista ao Irã, antecedido de várias incursões contra o Líbano e a Síria o receio das populações árabes em se tornar um próximo alvo seja palpável, as manifestações de apoio aos paestinos não deixaram de acontecer, e em diversos casos enfrentando-se ainda com a repressão dos governos árabes locais.
No Egito, além da recente repressão ao comboio Sumud e à Marcha Global para Gaza, dezenas de ativistas pró-palestinos estão presos. No Marrocos diversas pessoas que criticaram publicamente a aproximação da monarquia governante com Israel estão presas ou processadas. Na Jordânia nada menos de 1,5 mil pessoas estavam encarceradas até outubro de 2024, dentre as quais 500 apenas após o protesto diante da embaixada israelense em Amã. Cinicamente o presidente do senado do país disse que a repressão seguirá e “não aceitará atos e protestos que se tornem plataformas da discórdia”.
O pavor que move os governos e a burguesia árabe é que o questionamento ao genocídio e ao colonialismo sionista, bem como a aproximação de muitos destes regimes com Israel reacenda a chama da Primavera Árabe, primeiro processo revolucionário do século XXI, derrotado em alguma medida pela ausência deste sentido antiimperialista que a causa palestina suscita. Os povos árabes protagonizaram em 2011 o maior levante revolucionário do século XXI, questionando as monarquias e ditaduras de diversos países simultaneamente. No entanto, a questão palestina não foi parte da Primavera Árabe. Isso colaborou com a ausência do sentido anti-imperialista e anticolonialista dos levantes, favorecendo a que o imperialismo estadunidense fosse visto como aliado relativo do processo, e pudessem manter a ordem de domínio no Oriente Médio.
Desde então, aprofundou-se de forma mais aberta ou dissimulada o papel das burguesias árabes como peça-chave da manutenção do status quo na região. Mas a potencialidade da aliança dos povos e da classe trabalhadora árabe é a que pode efetivamente combater o genocídio, em aliança com o enorme movimento pró-palestina mundo afora. E não apenas isso, mas abrir caminho para uma nova Primavera Árabe verdadeiramente anti imperialista e anticolonialista, que unifique o combate contra os regressivos regimes árabes à causa palestina, abrindo espaço para o futuro socialista na região que responda efetivamente às demandas do povo palestino e árabe.