Revista Casa Marx

Oitenta anos da capitulação nazista: um debate contra uma entrevista sinistra

Thiago Flamé

No dia 8 de maio se completaram 80 anos da capitulação nazista e de que foi erguida a Bandeira soviética em Berlim. Em tom de descontração, Breno Altman e Jones Manuel trataram de alguns dos principais debates sobre as revoluções dos anos trinta e o papel da URSS e de Stálin na Segunda Guerra Mundial. Entre uma risada e outra, no entanto, difundiram perigosas mentiras e distorções históricas. Neste artigo, buscamos tirar do caminho tais falsificações para entrar no verdadeiro e necessário debate de estratégias sobre a Segunda Guerra Mundial.

“Olha a esperança à frente dos exércitos,

olha a certeza. Nunca assim tão forte.

Nós que tanto esperamos, nós a temos

com o russo em Berlim”

Carlos Drummond de Andrade – “Com o russo em Berlim”

No seu livro sobre a Segunda Guerra Mundial, Ernest Mandel define o conflito como uma combinação de vários tipos de guerra, como uma reacionária guerra inter imperialista a ser derrotada, mas também guerra justas, como as de libertação nacional de várias coloniais e a guerra que travava o estado operário. Mandel escreve  não como um acadêmico, mas como alguém que viveu a experiência na carne, militando sob ocupação nazista e preso três vezes em campos de concentração e trabalho forçado. Ainda que tenha, mais tarde,   abandonado diversas posições trotskistas e marxistas revolucionárias, sua interpretação  da Segunda Guerra Mundial permanece, aliada à sua  a sua trajetória  como militante revolucionário no terreno de combate europeu, como um legado para as novas gerações. 

A defesa incondicional da União Soviética, em qualquer cenário de guerra, era um ponto fundamental da IV Internacional. Da mesma maneira a posição dos revolucionários em guerras entre estados nacionais nunca se define pelos regimes políticos, mas pelo caráter de estado. Como dizia Trótski, em um embate entre a Inglaterra democrática e o Brasil “fascista” de Getúlio Vargas, os revolucionários se posicionam ao lado do país oprimido, coloniais, semi-coloniais ou atrasados. 

É importante partir disso para limpar campos e dividir o joio do trigo entre os argumentos, o debate de estratégias que nos interessa, dos amálgamas e falsificações de que essa sinistra entrevista está repleta. Nada tem a ver a oposição de esquerda e Trótski, que expressam a continuidade do leninismo e do marxismo revolucionário e agrupam boa parte dos “velhos bolcheviques” frente a burocratização da URSS. É espantoso, antes de mais nada, ter que escutar o cinismo descarado da afirmação de que  “é verdade que Stalin falsificou a história, para não reconhecer o papel de Trótski na guerra civil russa, mas os historiadores trotskistas também falsificam o papel de Stalin na II Guerra”. Mentira! O aparelho de estado dirigido por Stalin queimou documentos, modificou e apagou fotos e registros, ensinou essa deturpação nos livros de história e nas escolas e universidades. Não existe comparação possível. 

O verdadeiro debate, mais fundamental, sobre o qual nem Jones Manoel, nem Breno Altman , na sua leitura stalinista da II Guerra Mundial, é o seguinte: uma estratégia baseada na luta de classes ou na guerra entre estados nacionais? Como se vê na entrevista, o fator luta de classes e revolução das massas não compareceu ao “bate-papo”…

A verdade no cenário da guerra

Em 31 de janeiro de 1943, desobedecendo às ordens de Hitler de morrer lutando, o general – recém promovido a marechal de campo, Friedrich Paulus se entregou às forças soviéticas, pondo fim a uma das batalhas mais importantes da II Guerra. A rendição desobediente de Paulus marcou o ponto, a partir do qual a guerra ofensiva se converteria em guerra defensiva para a Alemanha Nazi. Pouco dia antes, em 17 de janeiro, as forças da frente única formada pelas organizações judaicas impuseram a paralisação das deportações aos campos da morte no gueto de Varsóvia. Depois da ação de janeiro, a frente única tomou o controle parcial do gueto, e ainda resistiria por quatro semanas à ofensiva militar iniciada em 19 de abril, mostrando que poucos milhares de combatentes unidos com a população do gueto puderam resistir tanto ou mais  tempo que os governo burgueses da França e da Polônia. A revolução havia entrado no tabuleiro europeu e não sairia dele antes do fim da guerra.

Essa frente única, limitada em um gueto, isolada, enfrentando as piores condições imagináveis , mostrou a força enorme da política de Frente Única Operária proposta por Trótski da década de 30. Se  tivesse sido seguida pelo Partido Comunista Alemão (PCA) teria evitado  a ascensão de Hitler. Esses combatentes também organizaram o arquivo secreto que teve o codinome de Oneg Shabbat. Lutaram contra a aniquilação do seu povo com todos os meios disponíveis, e a defesa da verdade histórica, os documentos que retratam a vida dentro do gueto e sua história de organização e resistência tiveram tanta importância para a resistência quanto os explosivos e as granadas. 

É a esses combatentes que dedico esse texto.  Eles também, à sua maneira, seguem a mesma luta pela verdade na história que, como afirmou o  historiador Victor Serge em  O Ano I da Revolução Russa, serve sempre aos interesses revolucionários da classe operária. Não ignoramos que na linha de frente daquela heroica resistência estavam não somente socialista, trotskistas e comunistas,  também os sionistas de esquerda. Entre os poucos sobreviventes do gueto, alguns estariam fundando seus kibutzim durante a invasão da Palestina, poucos anos depois. A estratégia burguesa adotada por  parte das direções da resistência não invalida o  papel histórico dessa luta. Ao contrário, faz brilhar com ainda mais força o heroísmo da batalha daqueles que, como os trotskistas judeus do gueto, compreendiam  seu combate como parte da revolução socialista internacional e da luta da classe trabalhadora e de todos os povos da Europa contra a subjugação Nazi, sem se render ao domínio dos aliados. Sem dúvidas o impacto dessas batalhas foi o de encher de moral e energia a resistência em todos os países ocupados e os soldados que lutavam nas trincheiras a leste e oeste. Hoje, quando a estratégia burguesa do sionismo se consolidou como uma das mais nefastas e está está dando seus piores frutos, é a luta do povo Palestino que representa a continuidade daqueles combates do povo judeu. 

Em defesa da revolução espanhola

Não é somente mentirosa a forma como Jones Manoel trata o sangrento conflito que foi travado no interior do front republicano na guerra civil espanhola, mas sobretudo, perigosa pensando as tarefas futuras da revolução. Jones Manoel diz, como quem diz uma obviedade, “mas lá na Espanha todo mundo se matava”. Como é possível tratar de forma tão leviana um problema tão grave? Ainda que fosse verdade, seria preciso dar alguma explicação materialista, que fica de fora da conversa. Nem entrevistado nem entrevistador tocam no ponto que deveria ser o ponto partida do marxismo, quem matava quem e em defesa de quais interesses de classe? Em paralelo surge, como se não tivesse nenhuma relação com o fato de que na Espanha “todos se matassem” a divergência fundamental entre trotskismo e stalinismo: avançar na expropriação da burguesia ou manter a propriedade privada. Nesse questão fundamental, Jones Manoel fica junto com os ministros burgueses e Stalin… contra o proletariado de Barcelona que mostrou sua vontade majoritária nas barricadas e contra o campesinato que na Catalunha e outras partes da Espanha avançavam na coletivização – vejam, que não era forçada, ao contrário!

No seu célebre texto, “Espanha, última advertência”, escrito depois que o governo de republicanos, anarquistas e stalinistas derrotou a insurreição de maio do proletariado de Barcelona, Trotsky afirmou: “Mas, para se conseguir a vitória sobre os governos Caballero-Negrin, teria sido necessária uma guerra civil na retaguarda do exército republicano!”, chora aterrorizado o filisteu democrata. Como se já não existisse, sem necessidade disso, na Espanha republicana, a guerra mais pérfida e desonesta, a guerra dos proprietários e exploradores contra os trabalhadores e camponeses. Essa guerra ininterrupta se traduzirá em prisões, assassinatos de revolucionários, desarmamento dos trabalhadores, armamento da polícia burguesa, abandono no front, sem armas ou recursos, dos destacamentos operários e, finalmente, a restrição oficial do desenvolvimento da indústria de guerra.” O que guiava a política de Stalin e da burocracia soviética na Espanha era mostrar para a França e a Inglaterra que na luta contra a Alemanha nazista a URSS era um aliado confiável e fiel defensor da propriedade privada contra as investidas da revolução  de operários e camponeses.

Só que Jones Manoel e Breno Altman abandonam uma análise de classe para defender a política de Stalin e acabam caindo inevitavelmente naquilo que querem criticar, numa leitura histórica contaminada teoricamente pelo liberalismo, qual seja, uma história contada como luta entre personalidades e não entre classes. Jones Manoel ainda inventa polêmica, como se a crítica trotskista fosse que a URSS não mandou armas para a Espanha republicana. A questão sempre foi e seguirá sendo: armas para que política? Vejamos como prossegue Trótski na sua defesa da revolução. “Cada um desses atos constituirá um forte golpe para o front, uma evidente traição militar ditada pelos interesses da burguesia. No entanto, o filisteu democrata, seja stalinista, social democrata ou anarquista, julga a guerra civil da burguesia contra o proletariado, mesmo na retaguarda próxima ao front, como uma guerra natural e inevitável, que tem por finalidade “assegurar a unidade da Frente Popular”. Pelo contrário, a guerra civil do proletariado frente à contra revolução republicana é, do ponto de vista do mesmo filisteu, uma guerra criminosa, “fascista”, “trotskista”, que rompe a unidade das forças antifascistas”. 

Se não foi assim então, quais os motivos da derrota da revolução?

A revolução Russa!

Seria legítimo dizer que a Revolução Russa triunfou seguindo os preceitos de Trotsky? A pergunta é mal colocada, já que o marxismo não se constitui de preceitos inventados, ou esquemas pré-fabricados, impostos à força a se encaixar na realidade, mas da síntese histórica e teórica das próprias revoluções e do processo da luta de classes. 

Os tais “preceitos” trotskistas, na primeira formulação da teoria da revolução permanente expressam a síntese das revoluções de 1848, da Comuna de Paris e do balanço dos sovietes na revolução derrotada de 1905 na Rússia. Com a eclosão da primeira guerra mundial, a traição da social-democracia e o início da revolução em fevereiro de 1917, Lenin e Trótski confluem para a mesma concepção da revolução. Os elementos fundamentais dessa confluência se expressam em primeiro lugar no rechaço histórico de ambos aos blocos e ao governo comum com a burguesia liberal, na defesa irreconciliável da aliança do operário e do camponês para levar a frente a revolução democrática contra o czarismo e na luta pela hegemonia operária. Na necessidade de um partido proletário e marxista, com centralismo democrático, e na concepção da ditadura do proletariado através das assembleias operárias e da democracia direta do proletariado, expressas na fórmula leninista de 1917, de que cada cozinheira precisa aprender a administrar todos os grandes problemas do estado. Antes que digam que Lenin nunca generalizou essas lições para outros lugares, lembrem-se de reler “esquerdismo, doença infantil do comunismo” e as conclusões fundamentais dos 4 primeiros congressos da III Internacional que foram em sua maioria elaboradas com comum acordo entre Lenin e Trótski, os dois principais dirigentes do período revolucionário da III Internacional. 

 Além de tudo é preciso que se lembre que o trotskismo nasce como uma corrente revolucionária de um país atrasado como era a Rússia e se torna massivo nas prisões da URSS entre, principalmente, os velhos bolcheviques falsamente acusados de traição. Na década de trinta centenas de milhares foram levados para os campos de prisioneiros acusados de “trotskismo”. As dezenas de milhares de verdadeiros trotskistas foram confinados em campos específicos para que não surgisse das prisões como um grande partido de massas. É preciso cortar na raiz a falsidade de que o trotskismo repete o relatório Kruschev… Parte do que existe de mais sólido nas denúncias de 1956 já era denunciado, com farturas de provas muito antes pelo trotskismo, que, por seu turno, nunca repetiu as bobagens como a que Stalin teria programa sua estratégia num globo de escola… 

Ainda que não seja o objetivo específico deste artigo, também é preciso fazer justiça a memória do trotskismo chinês e da Indochina que também se tornaram correntes com influência de massas em determinados momentos. EM particular à memória de Tha Thu Thau, o dirigente trotskista do Vietnam que se transformou em deputado através do bloco de frente única de comunistas e trotskistas e depois, quando mostrou que tinha a maioria da classe operária de Saigon ao seu lado, foi brutalmente, e covardemente, assassinado pelos stalinistas. Esteve bastante longe de ser irrelevante a influência dos trotskistas na primeira fase da revolução e da luta anticolonial da indochina. 

Revisionismo, qual revisionismo? 

O marxismo revolucionário passou por duas grandes ondas de revisionismo, a de Bernstein e a de Stalin, que, apesar das grandes diferenças entre ambos, compartilham no fundamental a ideia da conciliação de classes com a burguesia. No caso do primeiro respondendo aos interesses da burocracia que se formou nos sindicatos e na representação parlamentar da Socialdemocracia europeia, no caso do segundo, com a ideia do socialismo em um só país, na defesa dos interesses de casta da burocracia soviética, na defesa das frentes populares na Europa e do etapismo nos países oprimidos.  

Só se adotarmos a visão e a terminologia da burocracia é que a tarefa histórica de desmistificar o papel de grande chefe militar de Stalin pode ser considerado revisionismo ou um relato liberal. Sem poder se apoiar no chão firme do materialismo histórico, Jones Manuel se rende ao sofismo liberal. “Se a guerra leva à concentração de poderes, como é possível falar em oposição entre os esforços de guerra das massas e da direção militar centralizada em Stalin?”

De novo a pergunta está mal formulada. Para que estudar a história real da II Guerra e se dar ao trabalho de comprovar na realidade suas afirmações, quando podemos substituir esse estudo por um esquema pronto? A guerra centraliza o poder, então, portanto, todo o mérito a liderança de Stalin! Que argumento mais baixo… Primeiro, que a grande vantagem da economia planificada ajudou a centralização de todos os recursos militares num nível superior ao da própria Alemanha. Isso se deve a estrutura social estatal e as conquistas de 1917, não diz nada sobre a liderança militar de Stalin. Segundo, o processo de concentração do mando militar passou por várias fases, não é um fruto dado de antemão, mas um resultado do próprio confronto militar em que o exército nazista se apoderou de 40% do território russo e parte significativa dos seus recurso naturais e militares totais com que a URSS contava em 1941. 

No início da ofensiva militar não só Stalin se paralisou, posto que esperava até o fim que a investida de Hitler ainda pudesse ser parte de um tensionamento para negociar. Como se pode ver consultando a fartamente documentada História do Partido Bolchevique de Pierre Broué o aparato burocrático do partido, acostumado a seguir ordens, não liderou e foi arrastado ou se rendeu ao inimigo. A iniciativa veio, antes de mais nada, de baixo e só depois de muitos meses o partido conseguiu se renovar, se apoiando nos novos elementos surgidos do calor da batalha. 

Visto de hoje é muito difícil avaliar no terreno tático todas alternativas estratégicas que se colocavam para a URSS e quais caminhos teriam sido mais econômicos para o sangue soviético. Não nos aventuremos  a uma história contra fática dos confrontos militares que decidiram a II guerra mundial, envolvendo milhões de soldados em ambos os lados das trincheiras e causando milhões de mortes. É sabido que Stalin não economizou no desperdício de vidas, nem nas grandes purgas que antecederam a guerra, nem curso da mesma, nem mesmo já tendo passado a guerra. Derramado pelo aparato a mando de Stalin, ou pelo inimigo nazista, a II guerra não poupou o sangue da classe trabalhadora e dos camponeses soviéticos. 

O mais seguro é ver que as escolhas que determinam as decisões de Stalin e dos seus generais não se deve a uma maior ou menor habilidade guerreira dos líderes, isso sempre vai haver em qualquer conflito militar. É preciso ver por trás dos erros e dos acertos dos generais e governantes, os interesses de classe que guiam os comandantes militares nos momentos decisivos. A luta de classes não para com a guerra. Isso é verdade igualmente para a guerra civil espanhola, para a ocupação francesa e para a “guerra patriótica” da URSS contra o nazismo.  

É nesse sentido que é possível dizer, no terreno concreto da guerra na Europa, no front ocidental e também no front oriental, que as massas e a URSS triunfaram apesar da péssima liderança de Stalin – não somente levando em conta suas capacidades como líder, mas a limitação que os interesses da burocracia soviética impunham ao esforço de guerra e, sobretudo, a ação revolucionária das massas. O mais criminoso no pacto com Hitler foi a divisão e a ocupação da Polônia pelo leste, ao mesmo tempo que Hitler a invidia pelo oeste. O pior que poderia um comandante em chefe na sua posição, Stalin fez, mantendo a passividade e buscando evitar o conflito a todo custo, nem que para isso fosse preciso se desfazer de potenciais aliados entre a classe trabalhadora e o campesinato dos países da Europa do leste. A força potencial dessa aliança foi vista mais tarde, no gueto de Varsóvia. 

O russo entrou em Berlim, como cantou o poeta, mas suas esperanças foram frustradas, o capitalismo venceu e se reconstruiu na Europa nos anos seguintes. Ao fim, o triunfo da centralização de Stalin sobre o esforço de guerra soviético significou a contenção da revolução nos marcos do regime burguês na Europa ocidental e a carta branca para Churchill massacrar o proletariado grego que na prática já havia tomado o poder e expulsado por si primeiro a invasão fascista e depois a nazista. Quando se estuda as condições da batalha revolucionária que se travou na Europa ocidental ao fim da II Guerra Mundial é que o papel nefasto de Stalin reluz. Salvou a burguesia na Itália e na França, com a palavra de ordem “primeiro a reconstrução” e deixou a revolução grega ser massacrada sozinha. Ao invés de lutar para vencer o capitalismo na Europa ocidental, dividiu o mundo em esferas de influência nas conferências de Yalta e Potsdam. 

 

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