Revista Casa Marx

Lula-Xi Jinping: a nova relação entre China e Brasil

André Barbieri

Enquanto Donald Trump se aventura no universo das tarifas punitivas, impondo à economia brasileira o gravame de medidas retaliatórias para salvaguardar seu pupilo de estimação, Jair Bolsonaro, a China opera com o soft power de uma potência capitalista que deseja atrair o Brasil para si. 

A China apoia firmemente o Brasil na defesa de sua soberania e dignidade nacionais e se opõe à interferência externa injustificada nos assuntos internos do Brasil”, disse o ministro de Relações Exteriores da China, Wang Yi, ao assessor especial do presidente da República, Celso Amorim. Pequim já havia se pronunciado através da porta-voz Mao Ning contra a intervenção tarifária dos Estados Unidos em assuntos domésticos no Brasil. Mas a nova mensagem do chanceler, dita em telefonema ao chefe do Itamaraty, marca uma inflexão. “A China apoia firmemente o Brasil na salvaguarda de seus próprios direitos e interesses de desenvolvimento e na resistência à prática intimidadora de tarifas abusivas”.

Não há dúvida que a corrida chinesa por um novo lugar na América Latina começa pelo Brasil, a maior economia do subcontinente. Ambos os países mantêm relações diplomáticas estáveis desde 1974, quando o governo militar brasileiro de Ernesto Geisel, por meio de seu ministro Antônio Azeredo Francisco da Silveira, reconheceu oficialmente a República Popular da China, na esteira das exigências dos Estados Unidos, que haviam organizado em Pequim o encontro entre Richard Nixon e Mao Tsé-tung. A China passou a ser o principal parceiro comercial do Brasil em 2009, no segundo governo Lula. Desde então, converteu-se num pilar para economia brasileira, dependente do agronegócio exportador, cuja soja, minério de ferro e petróleo foram devorados por uma China em ascensão. Mas isso não basta agora. A China vê na América Latina um ativo indispensável na sua disputa estratégica contra Washington. E o Brasil é sua porta de entrada (a Argentina vem em seguida).

Nem tudo se explica pela proximidade histórica entre Lula e Xi Jinping. Em grande medida, a política de ingresso incremental da China como força decisiva na América Latina é facilitada por Trump. Wang Yi comunicou à chancelaria brasileira o interesse da China em “compensar as perdas” com as tarifas de 50% de Trump. Em outras palavras, oferecer maior cota de mercado em termos de importação e exportação, especialmente em termos de matérias-primas. “A China está pronta para trabalhar com o Brasil, outros países da América Latina e do Caribe e os países do Brics para, em conjunto, defender o sistema multilateral de comércio e a equidade e justiça internacionais”, segundo Guo Jiakun, porta-voz da chancelaria chinesa.

A ofensiva diplomática não esperou. O governo Xi Jinping criou o novo termo, “comunidade China-Brasil”, para se referir à parceria estratégica dos dois Estados. Ao mesmo tempo em que Trump aplicava a Lei Magnitsky sobre Alexandre de Moraes e confirmava a valência das tarifas, Guo Jiakun afirmava em coletiva de imprensa no Grande Salão do Povo que a “cooperação mutuamente benéfica e amigável entre a China e o Brasil beneficiou os dois povos, promoveu o processo de modernização de cada país e se tornou um modelo de solidariedade e cooperação entre os principais países em desenvolvimento”. 

Assim como na Ásia-Pacífico, a China deseja extrair a América Latina da velha estrutura de segurança pós-Segunda Guerra Mundial. A Doutrina Monroe 2.0 de Washington não é aceitável para a China. Um sistema de transição implicaria a divisão equilibrada dos recursos e a distribuição da influência. A China, orientada à construção de “forças produtivas de alta qualidade”, teria mais obstáculos para emergir como potência sem o acesso às matérias-primas, aos recursos hídricos e minerais indispensáveis às novas tecnologias. O êxito da China em avançar tais objetivos com o Brasil é um dos fatores principais das tarifas de Trump. Os Estados Unidos estão decididos a serem mais duros com o governo brasileiro na definição de qual alinhamento estratégico terá. É possível que Trump represente a rejeição de Washington à tradicional dupla dependência brasileira. 

Mas, como diz um provérbio chinês, “nem o Céu interdita o caminho de alguém”. Pequim já demonstrou interesse, por exemplo, em fortalecer os acordos com o setor aeroespacial brasileiro e passar a ser cliente privilegiado da Embraer, depois de aplicar tarifas recíprocas à Boeing como meio de retaliação às restrições comerciais de Trump. Segundo Lin Jian, o Brasil seria uma “grande potência aeronáutica”, e “a China ficará feliz em ver as companhias aéreas chinesas cooperarem com o Brasil com base nos princípios de mercado”. De fato, empresas chinesas tem em mira entrar na indústria tecnológica de defesa do Brasil. A estatal chinesa NORINCO manifestou interesse em adquirir 49% das ações da empresa brasileira Avibras Aeroespacial, principal fabricante de sistemas pesados de defesa do Brasil. A proposta foi formalizada através de uma carta enviada ao Ministério da Defesa brasileiro. A Avibras, que enfrenta dificuldades financeiras, incluindo recuperação judicial e atrasos no pagamento de salários, vê na parceria com a Norinco uma possibilidade de recuperação e continuidade de suas operações.

Mais importante, o Brasil decidiu ter representantes militares com patentes de general em sua embaixada na China. Vão instalar-se em Pequim dois novos representantes das Forças Armadas, encabeçados pelo general Rovian Alexandre Janjar, que será adido do Ministério da Defesa. Junto ao adido naval e da aeronáutica, serão cinco militares. Essa estrutura só existe na embaixada brasileira dos Estados Unidos. Essa mudança vem um ano após a viagem a Pequim do comandante do Exército, general Tomás Paiva, que se encontrou com o ministro chinês da Defesa, almirante Dong Jun, e com o comandante da força terrestre do Exército de Libertação Popular (ELP) da China. Nessa oportunidade, Tomás Paiva visitou a Norinco. Maurício Santoro, professor de Relações Internacionais do Centro de Estudos Políticos-Estratégicos da Marinha do Brasil, diz que, “em termos simbólicos, é como se as Forças Armadas brasileiras, o Ministério da Defesa, estivessem equiparando a China aos EUA, em termos do tipo de diplomacia militar que se vai buscar”. 

Há contradições militares incontornáveis para o Brasil: a operação dos equipamentos militares do país dependem das relações com os EUA e a OTAN. um limite estrutural para Pequim. Não obstante, o avanço incomoda. Não por coincidência, os Estados Unidos cancelaram reuniões previstas para julho e agosto com militares do Brasil.

Tais movimentos são novos e importantes. O “não alinhamento automático” de Lula, base de sua política externa, não é neutro: tem uma inclinação crescente à China (e em outra medida à Rússia). Seu compromisso com os BRICS, que vem assumindo maiores traços geopolíticos a despeito da enorme heterogeneidade interna, também cresce. Lula pretende dar uma resposta unificada dos BRICS contra o tarifaço de Trump. A conversa principal é com Xi Jinping, que aspira a converter os BRICS em um bloco mais claramente anti-Estados Unidos, o que até agora foi antagonizado por Brasil e Índia. Agora, entretanto, com os gravames comerciais contra Brasília e Nova Délhi, a China busca não perder a oportunidade. 

Tudo isso está inscrito numa relação de subordinações pendulares e dependências cruzadas, que impedem movimentos mais bruscos de ruptura. Os Estados Unidos têm uma presença histórica forte na América Latina. Desde a época de James Monroe, o imperialismo norte-americano desenvolveu uma estrutura de controle e não-interferência nos assuntos considerados “seus” na América. Países como o Brasil serviram de plataforma de combate para o Exército dos Estados Unidos atuarem na Segunda Guerra Mundial. As ditaduras militares no Cone Sul foram digitadas a partir de Washington e inscreveram na pele das nações subordinadas do subcontinente a lealdade ao “amo do norte”. Seus recursos naturais e forças produtivas estiveram desde então à disposição dos caprichos de Republicanos e Democratas. Quando os ataques não lhes pareciam suficientes, orquestraram golpes institucionais como no Paraguai, e mais decisivamente no Brasil. Com Trump, a agressividade dos Estados Unidos na preservação de sua zona de influência latino-americana aumentou muito. 

Entretanto, a agressividade dos Estados Unidos corresponde ao perigo que enxerga na atividade nova de Pequim, que da Patagônia até o Porto de Chancay passa a ter peso não só econômico, mas político no subcontinente. No Brasil, já há muito que Lula enxerga na China uma válvula favorável a sua política de relativa “autonomia estatal”, que inclui a subordinação a Pequim e Washington, mas também a utilização da disputa sino-estadunidense como alavanca para seus interesses.

Brasil e China, em contexto

Lula conheceu Xi Jinping pessoalmente em 2009, quando o presidente da República Popular estava às vésperas de assumir o cargo estratégico de vice-presidente da Comissão Militar Central, organismo partidário que controla o Exército de Libertação Popular, durante a administração de Hu Jintao. Na esteira da crise mundial de 2008, Lula mencionaria a Xi o objetivo de que as trocas comerciais entre Brasil e China se fizessem com o real e o yuan, proposta que retomou nessa nova viagem, além do então chamado “Plano de Ação Conjunto 2010-2014”, apelidado de “PAC Chinês”, que buscava “salvaguardar direitos e interesses legítimos dos países em desenvolvimento”. O ano de 2009 foi o momento em que a China se tornou o principal parceiro comercial do Brasil.

O Brasil passou a estar umbilicalmente relacionado com a China. A assimetria entre as economias é evidente, e se manifesta em maior grau de complementaridade, embora haja setores (como a indústria) em que os elementos de competição também floresçam. Esse caráter majoritariamente complementar deve ser examinado à luz da anatomia anárquica do capitalismo e do mundo dos monopólios: ao integrar a cadeia produtiva chinesa, parte importante da economia brasileira foi enxertada como um ramo acessório de uma potência que passou a poder submeter determinadas nações mais pobres. Em outras palavras – de forma semelhante à Argentina, nesse aspecto – a economia brasileira desenvolveu uma dependência de natureza estrutural diante das importações de matérias-primas por parte da China, nas últimas três décadas, e em especial a partir do governo Lula em 2003.

As primeiras modificações em termos de relacionamento bilateral se operaram com a globalização econômica e a finalização da Guerra Fria. A partir desse momento, a Ásia se mostrou como um mercado promissor para países como o Brasil. Ainda que em princípio o mais importante sócio comercial desta potência regional fosse o Japão, este não tardou em ser suplantado pela China, que se converteu no primeiro destino asiático das exportações brasileiras em 2002, e em 2004 o primeiro importador asiático na balança comercial brasileira. As relações comerciais de ambos os países se incrementaram consideravelmente pela importação de petróleo e soja por parte da China. Em 2009, a China substituiu os Estados Unidos como primeiro parceiro comercial do Brasil.

Nessa dependência econômica estrutural, a assimetria na pauta produtivo-exportadora pode ser resumida nos seguintes termos: a economia brasileira exporta bens primários e semimanufaturados, enquanto a China exporta bens manufaturados com alto valor agregado, cada vez mais imbuídos de tecnologia. Esse processo não deixou de ter consequências. Quanto mais a China alcançava o primeiro posto na parceria comercial com o Brasil, mais a economia brasileira ressaltava relativamente seu papel de “fazenda do mundo”, aprofundando a reprimarização da economia em detrimento da indústria. A relação econômica bilateral não se caracteriza apenas por essa dinâmica, na medida em que há intercâmbios que constam nos fluxos de investimentos estrangeiro direto dos países (o investimento chinês se encontra presente nos setores automotivo, energético, siderúrgico, eletrônico, entre outros). Entretanto, o florescimento do vínculo econômico mútuo se inscreveu nos marcos dessa assimetria estrutural, que passou da década de 1990 até os nossos dias. 

De passagem, podemos dizer que as esperanças de que a relação com a China “incremente a capacidade tecnológica do Brasil” são, no mínimo, questionáveis. Todas as relações comerciais no capitalismo estão pautadas na desigualdade entre as estruturas econômicas. O Brasil é valioso para a China pela “vocação exportadora de matérias-primas”, como minério de ferro, soja e petróleo. Nada indica que o objetivo da China seja reindustrializar o Brasil quando seu interesse é de incrementar o extrativismo primário agro-minerador. 

Nessa lógica, o grau de investimentos da China no Brasil, em termos quantitativos, assumiu um curso expansivo a partir do início da década de 2000, e não deteve seu ritmo desde então.

Em 2009, a China ultrapassou os Estados Unidos para se tornar o principal destino de exportação do Brasil, o que se manteve até os dias de hoje. A expansão das vendas para a China foi muito significativa e atingiu US$67.7 bilhões em 2020, perfazendo um terço de todas as exportações brasileiras. O comércio total entre os dois países atingiu um recorde de US$101 bilhões, a primeira vez que o comércio exterior do Brasil atingiu um valor de três dígitos com um único país. De acordo com o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), entre 2007 e 2020, 130 empresas chinesas anunciaram 242 projetos no Brasil, o que resultou em investimentos potenciais no valor de US$110.7 bilhões […] Considerando o contexto global, os dados disponíveis indicam que o Brasil foi o quinto maior destinatário do investimento chinês para o período entre 2005 e 2020, imediatamente após os EUA, Austrália, Reino Unido e Suíça (CASTRO NEVES, CARIELLO, 2022, s/p).

 O levantamento da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), de fevereiro de 2025, aponta que a China manteve sua posição como principal investidor asiático no Brasil, com um estoque de Investimento Estrangeiro Direto (IED) de US$ 45,3 bilhões em 2023, um crescimento de 22,1% em relação a 2022. Com o resultado, a China se posicionaria como o 9º maior investidor no Brasil, conforme dados oficiais do Banco Central do Brasil. Mas, segundo o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), esse número pode ser ainda maior, na ordem estimada de US$ 73 bilhões, o que tornaria a China o quinto maior investidor no Brasil em termos de estoque total, atrás apenas de Estados Unidos, Países Baixos, França e Espanha, respectivamente. É ainda uma fração do investimento dos EUA – segundo a Amcham Brasil (Câmara Americana de Comércio para o Brasil), o estoque de investimentos de empresas americanas no país ultrapassa US$ 357 bilhões, representando 34% de todo o investimento direto no Brasil. Mas vem crescendo constantemente.

Do ponto de vista qualitativo, os nichos de investimento chinês no Brasil compõem parte do quadro global de como a economia e a política nacionais evoluíram. A título de exemplo, a importância da China para o agronegócio brasileiro é tão notória que o Partido Comunista Chinês se converteu em um parceiro econômico admirado pelos mais conservadores magnatas rurais. Segundo estudo do Ipea de 2021, durante o governo Bolsonaro, a balança comercial brasileira fechou 2020 com saldo positivo de US$ 50,9 bilhões – crescimento de 6% frente a 2019, com destaque para o agronegócio, que bateu mais um recorde, chegando a um saldo final de US$ 87,7 bilhões. O ano de 2020 foi o de mais peso do agronegócio em volume total exportado pelo Brasil (48% do total), quando comparado com 2019 (43%) e com 2018 (42,3%). De posse desses dados, é impossível não notar a parcela das exportações agrícolas  abocanhada pela China: Pequim foi o destino de 33,7% do total das vendas internacionais de produtos agrícolas em 2020, seguida de muito longe pelo conjunto dos 28 países da União Europeia (16,2%), e sendo um destino quase seis vezes maior comparado ao volume vendido aos Estados Unidos (6,9%). 

Se a parcela chinesa do montante global das exportações brasileiras já se converte num símbolo da dependência brasileira, quando examinamos com cuidado as matérias-primas mais importantes da pauta exportadora do Brasil, o papel da China é talvez ainda mais relevante. Segundo o mesmo estudo de 2021, de todos os produtos do agronegócio exportados pelo Brasil, a soja continuou sendo o carro-chefe (soja em grãos e farelo de soja), que respondeu sozinha por 34,2% do total do valor exportado em 2020 (equivalente a US$34,5 bilhões). Em 2020, o montante da soja brasileira exportada para a China correspondeu a 60,2% do montante global exportado (79% da soja exportada pelo Mato Grosso do Sul foi absorvida pela China). Esse volume destinado à China, de quase dois terços da exportação da soja brasileira, atravessa uma tendência de queda desde 2018, e que continuou em anos seguintes (de janeiro a outubro de 2021 a China importou 60 milhões de toneladas de soja, 4% a menos que em 2020 1, e nos primeiros seis meses de 2022 importou 35 milhões de toneladas, 12% a menos que no mesmo período de 2021 2). Ainda assim, a China impõe-se como a alavanca financeira da produção da soja no Brasil. Na análise dos principais mercados de destino das exportações brasileiras, a China continuou na liderança em 2022, com 21,5% de participação, seguida dos Estados Unidos, com 11,6%.

Em 2024, a China foi responsável por receber cerca de 28% de todas as exportações brasileiras, impulsionada principalmente pela demanda por commodities agrícolas, minerais e petróleo. No contexto específico do agronegócio, a participação chinesa nas exportações brasileiras se mantém em patamares elevados, com um valor que pode chegar a 37,1% das exportações. Com a escalada das tensões comerciais e as tarifas de Trump, a China vem ganhando fatias maiores do agronegócio nacional. Os dados da balança comercial brasileira confirmam esse protagonismo: em 2024 e entre janeiro e junho de 2025, o país asiático respondeu por 33% das exportações totais do agro brasileiro, com destaque para a soja, que representou cerca de 70% das exportações do grão.

Não admira que a burguesia ligada ao agronegócio brasileiro tenha visto crescer sua importância econômica e política, na mesma medida em que o atraso e a dependência estatal se avolumavam. Além do capital estadunidense e europeu, o capital chinês fez incursões no setor para que seu desenvolvimento fizesse parte do gradual fortalecimento da China no país. Empresas chinesas como COFCO, Tide Group e Long Ping High Tech possuem uma trajetória de anos de investimentos substanciais no setor agrícola brasileiro. Apesar do investimento chinês ainda ser comparativamente pequeno, é feito no intuito de incrementar o caráter primário das exportações brasileiras. De acordo com dados oficiais, as exportações agrícolas para a China saltaram de 35% do total das exportações brasileiras para o gigante asiático em 2010 para 50% em 2020. O setor financeiro chinês também passou a expandir gradualmente, ainda que lentamente, sua presença no Brasil, seguindo os passos mais gerais da integração chinesa na economia.

O Banco da China foi o primeiro banco chinês a ser estabelecido no Brasil, começando em 1998 com um escritório de representação e finalmente se tornando um banco completo em 2009. A partir de 2012 outros bancos chineses abriram filiais no Brasil, seja diretamente ou através da aquisição de bancos locais. Vale mencionar o Industrial and Commercial Bank of China, a aquisição do Banco BBM pelo Bank of Communications e do Bicbanco pelo China Construction Bank. A aquisição de bancos estrangeiros com agências no Brasil também levou à presença de bancos chineses no Brasil, como foi o caso do Banco Espírito Santo de Investimento pela Haitong (CASTRO NEVES, CARIELLO, 2022, s/p).

É instrutivo notar que a disparidade desse investimento chinês no Brasil diante do movimento inverso de capitais é significativa. Os investimentos brasileiros na China são demasiado modestos. De acordo com dados do Banco Central do Brasil, entre 2007 e 2015, as empresas brasileiras investiram US$291 milhões na China, o equivalente a menos de 1% do investimento estrangeiro total na China.

Com as tarifas de Trump que incidem sobre a China, o Brasil aparece como mercado de absorção de recursos que antes eram trazidos dos Estados Unidos. Em abril de 2025, o South China Morning Post anunciou a chegada de 40 navios com commodities brasileiras no porto de Ningbo, entre eles 700 mil toneladas de soja, um aumento de 32% em relação à 2024. Ligado a esse incremento das relações com o Brasil, a China anunciou possuir “autonomia alimentar dos EUA”, dispensando as fazendas estadunidenses. O incentivo ao crescimento do agro é evidente.

Mas não só de crescimento de exportações vive a dependência. Efetivamente, as importações brasileiras da China vêm aumentando gradativamente, diminuindo a margem do superávit comercial de que sempre gozou com os chineses. Segundo o mesmo South China Morning Post, o Brasil teve queda de 7,5% de exportações e aumento de 22% de importações, em 2025. A China passou a importar terras-raras do Brasil na disputa por minerais estratégicos – mas o Brasil está sendo dominado pelos veículos elétricos chineses: 84% das importações de veículos elétricos vêm da China, e da mesma maneira aumentaram as importações de ferro e aço chineses. 

Talvez esse seja um símbolo forte do sentido da relação sino-brasileira no comércio: ao contrário da “reindustrialização tecnológica” e maior autonomia do Brasil, a resultante é uma crescente dependência econômica e tecnológica já não apenas dos Estados Unidos, mas também da China, desde insumos de inteligência artifical até baterias e veículos elétricos, que podem passar a ser montados no Brasil (como vemos com a fábrica da BYD). O papel do Brasil segue sendo o de exportação de matérias-primas, a sina agrário-exportadora extrativista. Mas com um grau superior de importação dos produtos de maior valor agregado da China. Os elementos de industrialização são escassos, e se dão de maneira subordinada.

O avanço da proximidade sino-brasileira nos ciclos de governo

Para esses resultados, uma construção diplomática prévia de anos foi arquitetada pelos governos respectivos. Já no governo Sarney, o Brasil e a China assinaram o programa CBERS (Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres) para o desenvolvimento de satélites de observação da Terra. Essa colaboração, iniciada em 1988, já resultou em seis satélites lançados (CBERS-1, CBERS-2, CBERS-2B, CBERS-3, CBERS-4 e CBERS-4A). O mais recente, CBERS-6, está em desenvolvimento, em acordo entre Lula e Xi Jinping, e projeta avanços significativos para investigação espacial (radar), permitindo a observação da Terra mesmo em condições de céu encoberto por nuvens, como na Amazônia. O avanço desses elementos põe em jogo o monopólio da supervisão amazônica e do Atlântico Sul realizada pelo Comando Sul dos EUA. 

O governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) iniciou uma articulação do eixo sino-brasileiro ainda sob a batuta de Washington, que passava a ver com preocupação o crescimento chinês e a política chinesa no Estreito de Taiwan na década de 90.

Com o objetivo de integrar o Brasil à ordem neoliberal do sistema de Estados, o governo FHC deu preponderância para o alinhamento com os Estados Unidos, o Japão e a União Europeia, indicados como parceiros estratégicos. Na Ásia, o Japão levava a palma nas relações com o Brasil. Entretanto, as reformas pró-capitalistas de Deng Xiaoping e Jiang Zemin mostraram uma China aberta a negócios, e o Brasil passou a entrar na pauta comercial chinesa. A “economia socialista de mercado”, sacralizada no 14º Congresso do PCCh em outubro de 1992, trouxe a abolição do sistema de economia burocraticamente planificada e a transição para um sistema de mercado capitalista, o que atraiu distintos Estados e empresários a nível internacional. 

Após a visita de Jiang Zemin ao Brasil em novembro de 1993 (a primeira na qualidade de chefe de Estado), Fernando Henrique visitou a China em dezembro de 1995, encontrando-se com Jiang Zemin e o primeiro-ministro Li Peng. Embora houvesse discussões diplomáticas amistosas sobre o incentivo para a intensificação de fluxos de capitais bilaterais e cooperação tecnológica, poucos acordos materiais foram selados. Nos anos seguintes, dignitários chineses seguiram uma política de investida de aproximação com o Brasil, com a visita do vice-presidente da Comissão Militar Central, Zhang Wannian, e do vice primeiro-ministro Li Lanqing, entre abril e maio de 1997; em outubro de 1998, com a vinda do chefe do Estado-Maior do Exército de Libertação Popular, Fu Quanyou, seguido pela ida do então Ministro de Relações Exteriores do governo FHC, Luiz Felipe Lampreia, em dezembro de 1998 – ocasião em que se assinou um Acordo de Cooperação Econômica e Tecnológica.

Mas o real avanço na relação bilateral foi feito durante os governos do PT, no ciclo 2003-2015. Os governos de Lula e Dilma desenvolveram uma política pragmática e agressiva de aproximação subordinada do Brasil com a China. Com uma visão geopolítica da inserção do Brasil no panorama internacional e da necessidade da multipolaridade, a política nacionalista burguesa de Lula adentrou os marcos das relações Sul-Sul, em que a parceria com a China (e países como Rússia, Índia e África do Sul, que dariam origem ao grupo dos BRICS) contrabalançava a pressão que os Estados Unidos seguiam mantendo na região, com o beneplácito dos governos latino-americanos. 

Durante a celebração do 30º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países, em 2004, Lula viajou à China com uma grande comitiva de empresários, ministros e parlamentares, em visita a Hu Jintao. Nessa ocasião foram criadas a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concentração e Cooperação (COSBAN) e o Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), órgãos centrais para a articulação econômica entre os respectivos Estados e suas burguesias nacionais. Ao final de 2004, foi Hu Jintao que realizou visita ao Brasil, selando a aproximação definitiva entre os governos. 

Em 2008, o governo Lula criou a “Agenda China”, destinada a reduzir desequilíbrios comerciais que passaram a se incrustar permanentemente na natureza da interação bilateral, e em 2010 o Plano de Ação Conjunta (PAC), com objetivos similares de aumentar o conteúdo tecnológico das exportações para o mercado chinês e reequilibrar a balança comercial. Em 2014, Xi Jinping fez sua visita inaugural ao Brasil para encontrar a então presidente Dilma Rousseff, sendo seguido em 2015 pelo primeiro-ministro Li Keqiang, ocasião em que foram assinados 35 acordos entre instituições e empresas de ambos os países, cobrindo áreas que vão do setor agrícola à pesquisa em tecnologia espacial. A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), organizações do agronegócio exportador que seriam base do golpe institucional de 2016 e do bolsonarismo, fortaleceram-se nos anos de governo do PT, não em menor medida em função da aproximação com a China.

O poder do capital financeiro ligado ao agronegócio (especialmente à exportação de grãos de soja, minério de ferro e carnes) cresceu em todos esses governos. Tendo sido o motor do padrão de crescimento fundado na exportação de produtos primários, fruto do alto preço das commodities na década de 2000, o agronegócio passou a converter seu peso econômico em peso político. Um dado gráfico foi a passagem para a base do governo de Jair Bolsonaro, depois de ter sido alimentado pelas políticas econômicas do PT. 

Uma analogia possível podemos encontrar na explicação que Gramsci fornece sobre o setor agrário da burguesia italiana, que na década de 1920 insuflou os segmentos de extrema direita, agrupados pelo fascismo, em nome da defesa de seus interesses econômicos. Sem lealdade ideológica qualquer, o grande capital agrário no Brasil, depois de ter enriquecido astronomicamente pela política conciliadora de Lula e Dilma, desatrelou os freios de suas tendências sociais orgânicas e aderiu à extrema direita a partir do golpe institucional de 2016. 

Isso, entretanto, implicou certa modulação de seu legítimo representante social de extrema direita. Bolsonaro manteve certos atritos retóricos com a China, no início do mandato, em nome de conservar acesa sua base social ideologicamente alinhavada contra a confusa e indefinida imagem do “comunismo”, ao que a República Popular é associada nos meios tradicionais de imprensa. Mas não pôde ficar nessa posição por muito tempo. Sucessivas crises diplomáticas de menor porte emergiram fruto das provocações de Eduardo Bolsonaro 3, ou da máxima de que a China estava comprando o Brasil. Essas iniciativas foram censuradas pelas grandes associações do agronegócio, que através da Ministra da Agricultura, Tereza Cristina – líder da Frente Parlamentar da Agropecuária que atuava em “diplomacia paralela” 4 contra o próprio chanceler, Ernesto Araújo – exigiam boas relações com o importador asiático. Kátia Abreu, e o vice-presidente Hamilton Mourão, trataram de fazer o possível em nome do agronegócio para salvaguardar as aparências e conter os arroubos bolsonaristas – algo que o próprio Javier Milei aprendeu a fazer, sendo disciplinado pelo agronegócio argentino. 

Disciplinado em cada circunstância, Bolsonaro terminou indo à China ao encontro de Xi Jinping em 2019, determinado a abrir o cardápio da entrega nacional e encontrar empresários chineses dispostos a comprar estatais em processo de privatização, como a Eletrobras, os Correios e setores da Petrobras. Em setembro de 2021, Bolsonaro afirmou que a China era um parceiro “essencial” para o combate à pandemia e para o sucesso do agronegócio 5. Ademais, interessado em 2018 em visitar Taiwan, Bolsonaro recuou e abandonou qualquer contato com Taipei.

Como explica Gramsci, os núcleos rurais da grande burguesia estão dispostos a utilizar os métodos mais violentos para preservar seus interesses, e o apoio aos governos mais reacionários é feito na medida em que se acomode à realização virtuosa de seus negócios. Esse desejo supremo pelos negócios encontra eco no novo governo Lula, com quem os magnatas do agronegócio buscam novo ciclo de enriquecimento, embora a predileção ideológico-política pelo bolsonarismo permaneça como marca. A realidade é que a continuidade da centralização exportadora de produtos primários básicos, sem valor agregado (soja, petróleo, minério de ferro) por parte do Brasil representa uma pérfida relação de troca, a conquista de dólares tendo em retorno o atraso e a dependência estruturais da economia, próprio da agenda da classe dominante nacional. 

Este setor da burguesia agrária, organizada em associações corporativas como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil e a Associação Brasileira do Agronegócio, fortaleceu-se politicamente, portanto, em função da expansão de sua capacidade econômica, ligada em não menor medida pela interação econômica que a China estabeleceu no país. O projeto de fazenda do mundo foi compartilhado por distintos governos na mesma proporção em que o papel da China na economia brasileira aumentava. Morfologicamente herdeira da classe dominante escravista agrária, a burguesia urbana estabelece múltiplos laços de reciprocidade com o núcleo rural, o que não impede, entretanto, de encontrar sua especificidade. Estes setores da burguesia urbana, como a industrial e financeira, possuem uma longa tradição de subordinação aos Estados Unidos e à União Europeia. Nesse aspecto, especialmente quanto à burguesia industrial, a interação com a China teve características mais competitivas, segundo o modelo mexicano. 

Em 2006, ainda no primeiro governo Lula, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI) se unificaram para questionar a dita “concorrência desleal” 6 da China, acusando o país de não obedecer às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Berringuer e Belasques (2020) notam que, no primeiro mandato de Dilma, outros setores da indústria brasileira passaram a temer a concorrência manufatureira oriunda da China, mesmo numa etapa do desenvolvimento histórico das cadeias globais de valor em que a Ásia já havia concentrado a porção hegemônica dos investimentos produtivos manufatureiros em detrimento de outros continentes. A Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos (ABIMAQ) reivindicava medidas oficiais para diminuir a assimetria na concorrência com os preços ofertados pelos fabricantes de máquinas e equipamentos chineses, que conquistavam mercados cada vez maiores no Brasil. Já a CNI voltou a expressar sua oposição à concessão de status de economia de mercado para a China, e nos estertores do governo Dilma antes do golpe institucional de 2016 produziu um relatório sobre o impacto negativo que a concorrência chinesa havia exibido para os setores eletrônicos, de máquinas e equipamentos, calçados, vestuários e têxtil do Brasil, clamando por políticas protecionistas. Tratava-se de uma postura animosa distinta daquela exibida pelos setores agrários da burguesia, beneficiados com a expansão da entrada de dólares no país fruto das exportações de commodities.

Ainda que a relação com a China tenha tido impacto distinto sobre os distintos segmentos da burguesia interna, as íntimas relações que a burguesia urbana estabelece, através da industrialização e a financeirização do campo, a deixa também em débito com o crescimento chinês. Em novembro de 2019, em reunião da CNI com representantes chineses, o presidente da confederação industrial brasileira, Robson Andrade, buscou cortejar a presidente da Câmara de Comércio Internacional da China, Gao Yan, a expandir negócios com o Brasil 7. A mesma ABIMAQ, mesmo reconhecendo o aumento da fatia chinesa no mercado de importações de máquinas no Brasil – em 2021, a China ultrapassou os Estados Unidos (18%) como principal origem de importação de máquinas para o país, com 25,5% das compras internas – não opôs o crescimento da produção nacional à concorrência chinesa 8.

Em outras palavras, poderíamos afirmar conceitualmente que há diferenças na apreciação do valor da relação econômica com a China, quando tomamos os diferentes segmentos da burguesia brasileira. Há termos complementares que se combinam com termos competitivos, especialmente quando tratamos do núcleo agroexportador e o núcleo urbano industrial manufatureiro. Entretanto, essas disparidades, ao contrário da década de 2000, já não são suficientes para exibir algum setor significativo da burguesia brasileira disposto a relegar a segundo plano as relações com a China. O paradigma da classe dominante se encontra na oscilação incerta entre Estados Unidos e China, não na disjuntiva Estados Unidos ou China, numa América Latina em que a competição comercial-tecnológica sino-estadunidense se converte também em disputa geopolítica.

Para além do peso da China no setor exportador agrícola brasileiro e sua conveniência com as posições políticas do núcleo rural do grande capital brasileiro, Pequim tem interesse em assegurar presença na rede de infraestrutura brasileira. Nisso, transparecem certas oportunidades para a entrada da Nova Rota da Seda, como mostra o precedente argentino. Ao contrário do México, o Brasil está no topo da destinação dos investimentos da China de Xi Jinping em toda a América Latina.

A China se consolidou como um dos maiores investidores estrangeiros no Brasil desde 2010, como mostra um estudo recentemente publicado pelo Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC). Ela rivaliza com os EUA e os países europeus, que estão estabelecidos como investidores estrangeiros no Brasil há décadas. O Brasil é o principal destino dos investimentos chineses na América do Sul, recebendo US$66.1 bilhões, equivalentes a 47% do valor total investido, na década até 2020. Entre 2007 e 2020, as empresas chinesas fizeram grandes investimentos no setor elétrico, que atraiu 48% do montante total, seguido pela extração de petróleo (28%) e mineração (7%). Se analisarmos os investimentos por número de projetos, não por valor, embora o setor elétrico ainda esteja no topo do ranking, com 31% do total, o setor manufatureiro ocupa o segundo lugar, com 28%, seguido por tecnologia da informação e agricultura, com 7% cada, e serviços financeiros, com 6% (CARIELLO, 2021, s/p).

A inversão de capitais no setor elétrico, um dos mais importantes para a busca de recursos através da Nova Rota da Seda, é um nicho notório da voracidade chinesa. A empresa pública State Grid Corporation of China (SGCC), a maior empresa energética do mundo, adquiriu em 2010 sete empresas brasileiras de distribuição de energia elétrica. Após uma série de aquisições, em 2016 já contabilizava o controle de 7.000 quilômetros de linhas de transmissão, tendo em junho daquele ano anunciado a compra da participação do grupo Camargo Corrêa na CPFL, distribuidora paulista de energia, joia da coroa do setor no Brasil. O processo de privatização e venda de ativos estratégicos no setor de energia, que já havia começado nos governos do PT, tomou curso acelerado depois do golpe institucional de 2016: houve mais de 15 operações de fusão no setor elétrico, que somaram quase R$ 86,2 bilhões em valor de empresa, na maior parte das quais o comprador era uma empresa estrangeira 9. A China se beneficiou: após a compra da CPFL por R$40.6 bilhões, a China Three Gorges também adquiriu ativos da Duke Energy no Brasil, e a CPFL, sob controle chinês, adquiriu a AES Sul. Em 2020, eram mais de 16.000 quilômetros de linhas de transmissão no Brasil controladas por empresas estatais chinesas. Como afirma Luiza Rosa 10.

O Brasil passou a receber maior volume de investimentos chineses a partir de 2010. De 2010 a 2015, o país recebeu cerca de US$37.1 bilhões em investimentos voltados, principalmente, para o setor de commodities, que é parte da pauta dos produtos mais exportados do Brasil para a China, e voltados para o setor de energia, em sua maioria hidrelétricas. É importante destacar que boa parte dos investimentos em hidrelétricas feitos pela China no Brasil provém de duas estatais: a State Grid, maior empresa do setor energético do mundo – que opera com cerca de 1,5 milhão de funcionários e fatura US$340 bilhões por ano – e a China Three Gorges. Essas empresas venceram licitações para a construção de usinas hidrelétricas e linhas de transmissão, como a de Belo Monte, que une o Pará ao Rio de Janeiro, e adquiriram ativos de empresas brasileiras e estrangeiras do setor de energia elétrica nacional. Isso significa que o próprio governo chinês tem investido no setor energético brasileiro e aumentado sua influência geopolítica no país […] De acordo com relatórios do Conselho Empresarial Brasil-China, foram 15 as empresas que investiram em energia elétrica no Brasil, desde 2014 até 2018. São elas: Shanghai Electric (distribuição de energia); China Three Gorges (energia eólica e hidrelétricas); State Grid e SPIC Pacific Energy (hidrelétricas); BYD Energy, JA Solar, Trina Solar e CED Prometheus (energia solar); China Investment Corporation (CIC) e CNOOC (Petróleo e gás natural); Shandong Electric Power Construction Corporation, Jiangsu Communication Clean Energy Technology e Jinjiang Environment (Termoelétricas) (ROSA, 2021, s/p).

Essa presença maciça da China no setor elétrico brasileiro, uma peça chave da infraestrutura nacional, condiciona o país politicamente aos desígnios de Pequim para além dos resultados no agronegócio. Trata-se de um movimento semelhante ao que a China vem fazendo na Argentina, no Chile e no Peru. A China Three Gorges possui ativos, além do Brasil, no Equador, na Bolívia e no Chile, em que participa da operação de 17 centrais hidrelétricas e 11 parques eólicos. Na Argentina, um projeto de US$4.7 milhões estima a construção de hidrelétricas no Rio Santa Cruz, província ao sul do país, com recursos do grupo chinês Gezhouba, multado e condenado por crimes ambientais em 2016. A América Latina também se tornou uma fazenda de energia para a China. Depois do setor elétrico, o investimento em petróleo e gás, a mineração e o setor da indústria são os mais atrativos ao capital chinês.

O setor de petróleo e gás é o segundo mais importante; Sinopec, CNPC, CNOOC e Sinochem já estão estabelecidos no Brasil. O terceiro setor mais importante é o de mineração, representado pela Wuhan Iron and Steel (WISCO) e a participação de um consórcio de empresas chinesas (CITIC Group, Anshan Iron & Steel, Shougang e Taiyuan Iron & Steel) que detém 15% da CBMM, uma empresa brasileira que explora o nióbio, entre outras atividades. Mais recentemente, a China Molybdenum Company, adquiriu os ativos de empresas anglo-estadunidenses. No setor industrial, vale mencionar também a crescente influência de empresas chinesas como BYD, Gree, Midea, Chery, Sany, XCMG e Liugong (CASTRO NEVES, CARIELLO, 2022, s/p).

Xi Jinping herdou a mesma postura pragmática de líderes anteriores do Partido Comunista Chinês diante do Brasil. Sua avaliação positiva do governo de extrema direita de Bolsonaro (apesar dos ataques recebidos pela China por parte do alto escalão bolsonarista) não é incompatível, segundo a weltanschauung econômica de Pequim, com o resgate das boas relações que travou com o PT na década de 2000 para animar sua relação com o novo governo Lula. A tolerância com os atritos oriundos do Brasil, como dissemos, tem fundamento tanto na necessidade dos recursos naturais do país, quanto no fato de que o Brasil é uma peça chave na disputa com os Estados Unidos. Segundo Harold Trinkunas, do Brookings Institute 11, durante os períodos em que buscou autonomia internacional, o Brasil encontrou na China um parceiro atraente para criticar a ordem internacional liberal promovida pelos Estados Unidos na esteira da Segunda Guerra Mundial. 

E Xi Jinping tenciona elevar o grau de parceria estratégica a níveis muito mais vultosos do que aquele atingido quando ambos os países formalizaram esse laço em 1993. No mês em que conseguiu seu terceiro mandato como secretário-geral do Partido Comunista, Xi parabenizou Lula por seu triunfo presidencial 12, afirmando estar disposto “a trabalhar com o presidente eleito Lula, de uma perspectiva estratégica e de longo prazo, para planejar e promover conjuntamente a um novo patamar a parceria estratégica abrangente entre a China e o Brasil, em benefício dos dois países e seus povos.”

O governo Lula 3 busca um salto qualitativo nas relações com Pequim. Compartilha a estrutura de submissão aos Estados Unidos com governos anteriores, mas num mundo completamente diferente, numa situação internacional de desequilíbrios constantes na economia, o genocídio sionista do povo palestino em Gaza, a Guerra da Ucrânia e a disputa febril sino-estadunidense com elementos de rearmamento e militarização global. Nesse novo mundo, a China ganhou uma gravitação econômica incomparável com o que possuía no início da década de 2000. Já não é um país dependente, é uma potência capitalista em ascensão, com traços imperialistas. Para os reformistas latinoamericanos, entretanto, surge como uma espécie de “alternativa benéfica” para frear determinados arroubos dos Estados Unidos, como vemos com as tarifas de Trump. Lula representa uma vertente dessa corrente política, que vê com bons olhos a entrada maior da China na América Latina, como instrumento de contrapressão aos Estados Unidos (ainda que haja contradições com a possível “inundação” de produtos chineses no país).

A armadilha do multilateralismo

Longe vão os antigos navios vindos do Império do Meio, que chegavam a Salvador, capital da colônia no século XVI, carregados de porcelanas, leques e seda, muitas vezes com trabalhadores chineses que vergavam seus corpos no labor excruciante compartilhado com os negros escravizados pelos europeus. Agora, os navios cargueiros saem dos portos brasileiros levando os produtos agrícolas para a China, precedidos pelos vultosos investimentos que o Partido Comunista de Xi Jinping utiliza para afiançar as parcerias de dependência, com traços semelhantes aos adotados pelos colonialismos europeus.

Essa posição é uma ilustração da complexidade do cenário latino-americano, em cujo tabuleiro as burguesias nacionais subservientes encadeiam os trabalhadores e a população pobre na armadilha da dupla dependência, ou dependência cruzada. 

O Brasil está submetido, como grande parte da América Latina, aos ditames de dois senhores, de peso distinto mas com pegada firme: Estados Unidos e China. Washington busca frear a entrada de Pequim e cortar o caminho ao gigante asiático, em muitos setores de alta tecnologia, como se viu durante a crise da Huawei. Entretanto, a nova realidade é que a América Latina já não é apenas dos estadunidenses, como rezava a Doutrina Monroe. O imperialismo ianque encontra dificuldades em localizar interlocutores confiáveis, e se politicamente segue tendo a primazia sobre a China, economicamente vem perdendo espaço numa região geopolítica estratégica.

Por sua vez, os interesses econômicos chineses, expressos em termos de espoliação nacional e neoextrativismo – diga-se de passagem, um das crises mais dramáticas das regiões oprimidas do mundo – revelam o caráter exato do expansionismo chinês na corrida por novos nichos de acumulação capitalista.

Particularmente no Brasil, o maior controle da rede energética de matriz elétrica por parte da China, ou o incremento da força chinesa na disputa com os Estados Unidos, é um sinal de alerta. A luta de Pequim por recursos hídricos, pelo lítio e os minerais estratégicos – agora cobiçados agressivamente por Donald Trump – mostra que a diferença em relação ao imperialismo consolidado dos Estados Unidos vai se concentrando cada vez mais no método utilizado para conquistar novos espaços de influência e exploração, e não em seus objetivos

A China desafia a liderança dos Estados Unidos e para isso se opõe aos interesses de Washington em múltiplos problemas. Mas de nenhuma maneira orienta sua política contra o domínio despótico do capital que está na raiz da exploração e das desigualdades que reinam no planeta. Pelo contrário, a China se insere de modo agressivo no sistema de exploração internacional do trabalho, e busca melhorar sua posição dentro do sistema de Estados capitalista. Ela reproduz em suas relações com outros países padrões de exploração e saque de recursos comparáveis aos de outras potências. Como vêm experimentando o proletariado e as nacionalidades oprimidas pela China, mesmo que esteja em confronto com o imperialismo, o Estado dirigido pelo Partido Comunista Chinês não representa nenhuma alternativa progressista ao domínio imperialista dos EUA e seus aliados, quer na América Latina, quer no mundo. 

Não se trata de equivaler a China, uma potência capitalista em ascensão, com o já consolidado  imperialismo ianque. Trata-se de compreender que a noção de que a China pode ser um contrapeso benigno à exploração imperialista é um equívoco. Um equívoco propagado por segmentos ligados ou influenciados pelo “progressismo petista”, que se acomodam à realpolitik da dupla dependência e do aprofundamento da subserviência às potências que disputam o globo – revestindo a empreitada com a máscara da suposta “maior autonomia” nacional. Essa política exacerba os traços de dependência e atraso de um país condenado, ontem e hoje, pelos Estados Unidos e agora pela China, a seguir sendo a “fazenda do mundo”, dominada por uma burguesia nacional conservadora e sempre apta a produzir seus Bolsonaros.

A luta contra a opressão nacional requer a iniciativa revolucionária da classe trabalhadora liderando o conjunto do povo pobre – o que leva a unir a luta contra a opressão nacional à batalha pela emancipação social. Não é prudente depositar expectativas no papel da China como apoio para qualquer busca de autonomia regional. A luta contra o imperialismo norte-americano e europeu na América Latina não encontrará a China em nosso “campo”.

BIBLIOGRAFIA

Luiz Augusto de Castro Neves e Tulio Cariello. China’s Growing Presence in Latin America. Springer 2022 (https://link.springer.com/chapter/10.1007/978-981-16-8603-0_8).

Tulio Cariello. Investimentos chineses no Brasil: histórico, tendências e desafios globais (2007-2020). Rio de Janeiro: CEBC, 2021.

Luiza Rosa. O investimento chinês em energia no Brasil. Disponível em: https://ecoa.org.br/o-investimento-chines-em-energia-eletrica-no-brasil/.

NOTAS

1.China compra quase 60 milhões de toneladas de soja do Brasil em 2021”. Canal Rural, 13/12/2021. Disponível em: https://www.canalrural.com.br/projeto-soja-brasil/soja-brasil-china-exportacao-toneladas/.

2.China compra 35,2 milhões de toneladas de soja do Brasil em 2022”. Canal Rural, 06/07/2022. Disponível em: https://www.canalrural.com.br/projeto-soja-brasil/china-compra-soja-exportacao-brasil-junho-ano-2022/.

3. A título de exemplo, Eduardo Bolsonaro havia atribuído à China a responsabilidade pela pandemia, nos mesmos termos já patenteados por Donald Trump, em março de 2020. Em novembro do mesmo ano, celebrava o acordo Clean Network com Trump, classificando-o como uma aliança global para um 5G seguro, “sem a espionagem da China”.

4. “’Tenho respaldo do presidente e uma interlocução muito franca com os outros ministros. A Ásia é nosso maior cliente, sendo a China o mais importante’, diz ela [Tereza Cristina]. ‘Existem contratempos, mas temos como nossa meta proteger o agronegócio dentro do governo’.” CNN, 19/07/2020. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/temos-que-proteger-nossos-principais-mercados-como-a-china-diz-tereza-cristina/.

5.Brics: Bolsonaro diz que parceria com China é ‘essencial’ para gestão da pandemia”. G1, 09/09/2021. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/09/09/em-reuniao-do-brics-bolsonaro-diz-que-parceria-com-a-china-e-essencial-para-a-gestao-adequada-da-pandemia.ghtml.

6.China compete de forma desigual e prejudica indústria brasileira, afirmam empresários”. Senado Notícias, 11/07/2006. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2006/07/11/china-compete-de-forma-desigual-e-prejudica-industria-brasileira-afirmam-empresarios.

7. Na ocasião, Robson Andrade declarou que “Na CNI, há grupo de 52 empresas transnacionais com investimentos fora do Brasil e querem ampliá-los, inclusive com a China. Entendemos ser a melhor forma de o Brasil se inserir no mercado internacional. A CNI tem defendido a abertura do Brasil a parcerias internacionais, com redução de tarifas e regras claras”. Portal da Indústria, 13/11/2019. Disponível em: https://noticias.portaldaindustria.com.br/noticias/internacional/industria-brasileira-quer-ampliar-comercio-e-investimentos-com-a-china-diz-presidente-da-cni/.

8.Importações de máquinas vindas da China cresceram 60,5% em 2021”. ABIMAQ Brasil, 28/10/2021. Disponível em: https://abimaq.org.br/blogmaq/626/importacoes-de-maquinas-vindas-da-china-cresceram-605-em-2021.

9. “Após golpe, empresas estrangeiras compram R$ 80 bilhões em ativos do setor elétrico”. Brasil de Fato, 30/08/2018. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/08/30/apos-golpe-empresas-estrangeiras-compram-rdollar-80-bilhoes-em-ativos-do-setor-eletrico.

10. “O investimento chinês em energia no Brasil”. Ecoa, 26/02/2021. Disponível em: https://ecoa.org.br/o-investimento-chines-em-energia-eletrica-no-brasil/.

11.Testing the limits of China and Brazil’s partnership”. Brookings Institute, 20/07/2020. Disponível em: https://www.brookings.edu/articles/testing-the-limits-of-china-and-brazils-partnership/.

12.Xi Jinping parabeniza Lula e cita ‘parceria estratégica’ entre China e Brasil”, CNN Brasil, 31/10/2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/noticias/xi-jinping-parabeniza-lula-e-cita-parceria-estrategica-entre-china-e-brasil/.

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